A Constituição diz que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
pertencem à União, sendo inalienáveis e indisponíveis. Logo, não podem ser
arrendadas. Por isso, a juíza Liane Vieira Rodrigues, da Vara Federal de Santa
Rosa, no noroeste do Rio Grande do Sul, condenou um
servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai) por intermediar o arrendamento
de terras na Reserva Indígena da Guarita. Como o funcionário público já havia
sido demitido, a sentença suspendeu seus direitos políticos pelo prazo de cinco
anos, proibiu-o de contratar com o Poder Público e multou-o em R$ 10 mil.
A sentença diz que, além do comprovado ato de improbidade
administrativa, foram violados os deveres funcionais e os princípios basilares
da Administração Pública. A decisão foi tomada no dia 29 de março e, dela, cabe
recurso ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Conforme denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal (MPF) à
Justiça Federal do Rio Grande do Sul, o servidor, na condição de chefe do posto
indígena da Reserva da Guarita, emitiu mais de 50 autorizações para que
não-índios adentrassem à Reserva para prestar serviços — na verdade, pequenos
arrendamentos agrícolas. As autorizações foram emitidas entre 2002 e 2005. Além
disso, o servidor da Funai também era responsável pela articulação de
financiamentos feitos em nome dos índios na agência do Banco do Brasil no
município de Planalto e pela comercialização da produção, de acordo com notas
fiscais apreendidas durante a investigação.
A Reserva da Guarita é a maior do Rio Grande do Sul, com 23 mil hectares
distribuídos entre os municípios de Tenente Portela, Redentora e Erval Seco.
Nela, habitam cerca de sete mil indígenas, das etnias caingangue e guarani.
Desde a Constituição de 1988, as terras reconhecidas como pertencentes a
indígenas só podem ser utilizadas por índios. O arrendamento destas áreas é
expressamente proibido pelo artigo 18 da Lei 6001/1973, conhecido como ‘‘Estatuto
da Terra’’.
O servidor se defendeu na Ação Cível de Improbidade Administrativa.
Afirmou que não ficou provada a existência de arrendamentos, mas de simples
contratos de assistência técnica, daí porque não se poderia falar em
improbidade administrativa: pela ausência de benefício recebido. Garantiu ter
procedido em estreita consonância com as regras, sem prejudicar a boa gestão da
coisa pública ou o erário.
Mas a juíza federal Liane Vieira Rodrigues afirmou que o prejuízo ao
erário não é essencial para a configuração do ato ilícito, porque a Lei
8.429/1992 (Lei da Improbidade Administrativa) não visa exclusivamente proteger
a parcela de natureza econômico-financeira do patrimônio público, adotando
abordagem ampla e irrestrita. "A leitura do texto da lei de forma
sistemática, desde logo, permite concluir que o prejuízo ao erário, prejuízo ao
patrimônio, enriquecimento ilícito, não constituem elementos essenciais ao
delito."
Ela afirmou que o vocábulo ‘‘improbidade’’ contempla a ideia de violação
ao que seja probo; isto é, de caráter íntegro, honesto e correto. Assim, a
atuação estatal, através do administrador, impõe a este o agir ético para com a
finalidade da norma, devendo pautar-se no princípio da moralidade.
No caso concreto, a magistrada disse que a conduta do réu feriu a
Instrução Normativa 3, de 25/06/2006, que contempla os seguintes deveres:
proibir quaisquer formas de cerceamento e arrendamento das terras indígenas;
garantir acesso aos índios de acordo com o uso tradicional do território; encaminhar
ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal as denúncias de arrendamento.
‘‘A Instrução Normativa materializa os deveres de respeito aos princípios da
Administração Pública no âmbito da autarquia, sendo irrelevante a data de sua
publicação’’, justificou, em resposta ao argumento de que os fatos alegados se
deram em anos anteriores.
A juíza afirmou, por fim, que os anexos que instruem a petição inicial
comprovam que o réu autorizou o ingresso de pessoas que não integravam a
comunidade indígena para praticar atos típicos da agricultura, mediante
pagamento de percentual sobre a produção. ‘‘Não se trata de assistência
técnica, como quer fazer crer o demandado (réu), mas de contrato de
arrendamento camuflado, pois os beneficiários se limitam a dizer que não sabiam
que era proibido cultivar nas terras indígenas’’, arrematou a juíza.
O réu foi condenado com base nos artigos 9º, caput (combinado
com o artigo 3º), 10, caput, e 11,caput, todos da Lei de
Improbidade Administrativa. As sanções judiciais incluem suspensão dos direitos
políticos pelo prazo de cinco anos; proibição de contratar com o poder público
ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou
indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário
pelo prazo de cinco anos; e multa civil no valor de R$ 10 mil.
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ler a sentença.
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