Criada em 2011,
a Lei 12.403, que definiu novas medidas cautelares para
evitar a banalização da prisão provisória no Brasil e, consequentemente,
reduzir a população carcerária do país, completou um ano no último mês de maio.
Para especialistas, no entanto, falhas na aplicação da norma impediram que seu
objetivo fosse alcançado, relata reportagem do portal G1.
Leia a reportagem.
Lei da nova fiança completa um ano, mas não reduz lotação de
cadeias
Objetivo da lei era diminuir as prisões provisórias, mas número aumentou. Para Defensoria, fianças ‘impagáveis’ mantêm mais pobres nas cadeias.
Objetivo da lei era diminuir as prisões provisórias, mas número aumentou. Para Defensoria, fianças ‘impagáveis’ mantêm mais pobres nas cadeias.
por Rosanne D'Agostino
A Lei 12.403, que criou medidas cautelares com o objetivo de
combater a banalização da prisão provisória no país, completa um ano nesta
quarta-feira (4/7) sem cumprir sua principal missão. O número de presos sem
julgamento continua aumentando e, segundo especialistas, uma aplicação falha da
lei tem contribuído para que essa população carcerária seja composta cada dia
mais por pessoas mais pobres.
Dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do
Ministério da Justiça mostram que a lei ainda não resultou em uma diminuição na
população carcerária brasileira (veja gráfico ao lado). Embora o número de
presos provisórios tenha crescido menos (o aumento em 2011 foi de 1%, contra
2,9% em 2010), o total de presos provisórios chegou a 217 mil no em dezembro de
2011, último número disponível.
Para defensores públicos, o motivo é uma falha na aplicação da
lei. Eles afirmam que juízes têm privilegiado a fiança em detrimento de outras
medidas. Na prática, o resultado é uma piora na situação prisional: quem não
tem dinheiro fica preso, mesmo tendo direito à liberdade provisória.
O G1 listou casos de aplicação da nova lei no último ano. Entre
eles, o de um juiz que aplicou medida de recolhimento noturno ao domicílio a um
morador de rua preso em flagrante por furto (leia: "Sob nova lei, juiz
mandou morador de rua ficar em casa à noite em SP"). O problema, para a
Defensoria Pública, era óbvio: em que domicílio?
Além disso, especialistas afirmam que alguns juízes não têm
especificado os motivos das preventivas em suas decisões e, em muitos casos,
nem sequer têm usado as medidas, determinando a prisão quando caberia uma
medida cautelar.
Quem fica preso?
Antes da nova lei, o próprio flagrante justificava a prisão. Agora, o juiz precisa fundamentar a decretação de uma prisão preventiva, que deve ser aplicada apenas como última saída.
Antes da nova lei, o próprio flagrante justificava a prisão. Agora, o juiz precisa fundamentar a decretação de uma prisão preventiva, que deve ser aplicada apenas como última saída.
A lei serve para quem não é reincidente e cometeu um crime com
pena prevista de até 4 anos. São nove medidas restritivas de liberdade, entre
elas estipular o pagamento de uma fiança e não permitir que a pessoa saia da
cidade (veja lista abaixo).
A intenção da lei era não mandar para a prisão alguém que, mesmo
condenado, não seria preso (uma pena de 2 anos, por exemplo, seria substituída
por prestação de serviço à comunidade, mas em muitos casos, o réu ficava preso
mais do que isso antes de ser julgado).
'Jeitinho'
O primeiro solto pela nova lei, no dia 4 de julho do ano passado, foi proibido de frequentar uma casa de prostituição. Segundo defensores públicos e pesquisadores, no entanto, a tendência de juízes desde então foi a de privilegiar outra medida: a fiança.
O primeiro solto pela nova lei, no dia 4 de julho do ano passado, foi proibido de frequentar uma casa de prostituição. Segundo defensores públicos e pesquisadores, no entanto, a tendência de juízes desde então foi a de privilegiar outra medida: a fiança.
“O problema disso é que se a pessoa furtou o desodorante, e o
juiz fixou um salário mínimo para sair, ela não paga e fica presa”, afirma a
defensora pública Virgínia Sanches Rodrigues Caldas Catelan, coordenadora no
Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária), que concentra
as prisões em flagrante da capital paulista.
Segundo dados do Depen, São Paulo não apenas não conseguiu
reduzir as prisões provisórias, como teve aumento de 3,6% em 2011, mais do que
o triplo do percentual nacional.
"Grande parte são pessoas pobres e continuam presos. É um
jeitinho de manter a prisão sem decretar a prisão", diz Catelan.
Milena J. Reis, defensora pública que também atua no Dipo na
capital paulista, diz que no 2º trimestre do ano passado tomou 8 providências
relacionadas à fiança no departamento. No mesmo período de 2012, foram 116, um "aumento
considerável", diz.
Segundo ela, porém, os juízes ainda preferem converter o
flagrante em preventiva. "Antes, alguns casos em que talvez a pessoa
sairia sem qualquer restrição, agora ela consegue essa liberdade provisória mas
com uma medida cautelar junto, uma restrição a sua liberdade", afirma
Morador de rua e ladrão de varal
O G1 encontrou decisões desse tipo tomadas por juízes do Dipo. Em um dos processos, um morador de rua que furtou fios permanece preso por causa de dois salários mínimos de fiança. Um homem furtou duas peças de carne e ficou dez dias em um presídio porque não tinha como pagar R$ 622.
O G1 encontrou decisões desse tipo tomadas por juízes do Dipo. Em um dos processos, um morador de rua que furtou fios permanece preso por causa de dois salários mínimos de fiança. Um homem furtou duas peças de carne e ficou dez dias em um presídio porque não tinha como pagar R$ 622.
Duas jovens, de 20 e 21 anos, que nunca tinham praticado crime,
foram presas furtando 5 peças de roupa e alegaram estar desempregadas.
Nesse caso, nenhuma medida cautelar foi aplicada, e elas
passaram um fim de semana presas em uma delegacia.
Pelo furto de camisetas em um varal, um desempregado continua
preso sob fiança de um salário mínimo.
“As famílias chegam aqui desesperadas. Não têm condições de
pagar para soltar o parente, querem pedir emprestado”, diz Virgínia. “A lei em
tese é ótima, mas na prática piorou a situação.”
As fianças vão de R$ 200 a dez salários mínimos, diz Reis. O
Tribunal de Justiça de São Paulo e o governo do estado informaram que não
possuem levantamento com o total de fianças recebidas nos processos.
Para o promotor de Justiça Christiano Jorge Santos, “tem havido
uma dificuldade de aplicar as medidas". "Antigamente até se concedia
a liberdade direto, sem fiança. Agora o juiz usa a fiança”, diz o assessor do
procurador-geral de Justiça de São Paulo e professor de direito penal da
PUC-SP.
Um dos motivos, segundo Santos, pode ser a dificuldade na
fiscalização das outras medidas. “Vai mandar um oficial de Justiça na favela
ver se o réu se recolheu à noite? Vai deixar a vítima à mercê do bom senso do
agressor? A fiança não é muito eficaz, mas é uma maneira de se acautelar o
juízo. É uma maneira de dizer: pelo menos comprovei patrimonialmente."
'Bola de cristal'
O juiz corregedor do Dipo, Alex Tadeu Zilenosvski, afirma não saber se os juízes paulistas têm preferido a fiança, mas defende que os magistrados devem aplicar a medida que for mais cabível em cada caso. “Acho que a verdade é que a liberdade provisória, a prisão preventiva ou a fiança é que acabam sendo as medidas mais adequadas à maioria das situações”, afirma.
O juiz corregedor do Dipo, Alex Tadeu Zilenosvski, afirma não saber se os juízes paulistas têm preferido a fiança, mas defende que os magistrados devem aplicar a medida que for mais cabível em cada caso. “Acho que a verdade é que a liberdade provisória, a prisão preventiva ou a fiança é que acabam sendo as medidas mais adequadas à maioria das situações”, afirma.
Segundo o juiz, pode haver uma "falha" na lei ao
prever que o juiz decida, logo de início, sobre a manutenção da prisão. “O que
o juiz tem em mãos quando ele decide isso? Basicamente é o auto de prisão em flagrante. Na massa
dos casos, não tem muita informação ali", diz.
"O juiz não tem bola de cristal, mas não vai fixar uma
fiança expressiva para uma pessoa que é pobre, indigente, morador de rua, e nem
uma baixa para um milionário", defende.
"O juiz tem poderes para requerer esses dados. Esse
problema poderia resultar no máximo em alguns dias a mais de prisão",
rebate Marivaldo Pereira.
"Isso não significa que estamos imunes a erros. É lógico
que o juiz erra também, mas esses eventuais erros são perfeitamente reparáveis,
o próprio juiz pode reparar, ou então o Tribunal de Justiça, no habeas corpus.
Cabe à Defensoria e aos advogados esclarecerem”, diz Zilenosvski.
O Dipo conta hoje com dois defensores públicos. Até meados de
maio, eram quatro, para atender a uma média de 1,5 mil flagrantes por mês. São
todos os casos em que o preso não pode pagar um advogado particular.
Por que fui preso?
Segundo pesquisadores do tema, juízes também vêm adotando a "manutenção da ordem pública" como justificativa isolada, sem explicar os motivos da preventiva.
Segundo pesquisadores do tema, juízes também vêm adotando a "manutenção da ordem pública" como justificativa isolada, sem explicar os motivos da preventiva.
Antes da lei, o juiz não concedia liberdade em três linhas.
Hoje, ele não concede em 15 linhas"
Julita Lemgruber, socióloga, que coordena levantamento de
decisões sobre a nova lei no Rio de Janeiro
“A única diferença significativa que estamos percebendo é a
maneira como o juiz justifica a manutenção da prisão. Antes da lei, o juiz não
concedia liberdade em três linhas. Hoje, ele não concede em 15 linhas”, afirma
a socióloga Julita Lemgruber, que coordena um levantamento de decisões pós-lei
no Rio de Janeiro.
“O Judiciário é conservador, acredita na pena de prisão. E isso
não mudou, hoje está pior ainda”, diz ela. "O que é manutenção da ordem
pública?", questiona.
No Rio Grande do Sul, a defensora pública Mariana Cappellari,
classificada na Divisão de Direitos Humanos, também afirma que juízes têm tido
dificuldades para aplicar as cautelares e que alguns têm adotado um “despacho
padrão” para manter as prisões.
“A lei exige que eles fundamentem quais os requisitos da
preventiva. A lei veio e não mudou muito essa cultura de prender. Mas eu sou
otimista, acho que tem que se dar tempo ao tempo", afirma.
O G1 procurou o Tribunal de Justiça do RS sobre as declarações,
mas o órgão não se manifestou até esta publicação.
"A lei é boa, porque não tirou o poder do juiz de decretar
a prisão para os casos necessários", afirma Zilenosvski. Nenhum juiz pode,
no entanto, fundamentar a prisão preventiva apenas na manutenção da ordem, sem
explicar o motivo da prisão, diz o corregedor do Dipo.
"O juiz é exatamente o reflexo da sociedade brasileira. É
claro que pode ter um mais liberal ou um mais durão. Mas pode escrever: um
decreto sem explicação vai ser revisto pelo TJ. A prisão é nula, isso não é uma
fundamentação por si só. Aqui temos mais de 82 mil inquéritos em andamento, mas
cada caso é importante. É terno feito por alfaiate, não é roupa por
atacado."
"Eu acho que os juízes são muito bem preparados, o que se
tem é uma necessidade de fortalecimento da estrutura para aplicação da nova
lei. Às vezes há um receio muito grande com aquilo que é novo. Mas eu creio que
isso somente o amadurecimento e o tempo serão capazes de resolver",
conclui o secretário do Ministério da Justiça.
Medidas cautelares previstas na nova lei:
- Comparecer periodicamente
em juíz.
- Proibição de acesso ou
frequência a lugares relacionadas ao crime cometido.
- Proibição de manter
contato com pessoa determinada.
- Proibição de sair da
cidade.
- Recolhimento em casa à
noite.
- Suspensão do exercício de
função pública ou de atividade econômica.
- Internação provisória em
crimes praticados com violência.
- Fiança.
- Monitoração eletrônica
(tornozeleira).
Revista Consultor Jurídico, 2 de julho de
2012
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