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Segurança jurídica e mudança na jurisprudência eleitoral


OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL


No último dia 1º de agosto, o Supremo Tribunal Federal tomou importante decisão, a qual terá impacto direto sobre a atuação da Justiça Eleitoral no curso dos processos eleitorais. Na ocasião, a Corte reconheceu a repercussão geral das questõesconstitucionais atinentes à (1) elegibilidade para o cargo de prefeito de cidadão que já exerceu dois mandatos consecutivos em cargo da mesma natureza em município diverso (interpretação do art. 14, § 5º, da Constituição) e (2) à retroatividade ou aplicabilidade imediata, no curso do período eleitoral, da decisão do Tribunal Superior Eleitoral que implica mudança de sua jurisprudência.
Assim, dando provimento ao Recurso Extraordinário 637.485, o Tribunal deixou assentado, sob o regime da repercussão geral, os seguintes entendimentos: (1) o artigo 14, parágrafo 5º, da Constituição, deve ser interpretado no sentido de que a proibição da segunda reeleição é absoluta e torna inelegível para determinado cargo de chefe do Poder Executivo o cidadão que já exerceu dois mandatos consecutivos (reeleito uma única vez) em cargo da mesma natureza, ainda que em ente da federação diverso; (2) as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral ou logo após o seu encerramento, impliquem mudança de jurisprudência, não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior.
O primeiro tema decidido tem inegável importância para as eleições municipais em curso, na medida em que fixa a interpretação do instituto da reeleição para os cargos de chefe do Poder Executivo, previsto no parágrafo 5º do artigo 14 da Constituição. De toda forma, tratou-se aqui, em verdade, da consolidação de entendimentos (com todos os efeitos decorrentes da sistemática da repercussão geral) que já vinham sendo albergados pela jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral desde o ano de 2008.
A grande inovação encontra-se na decisão quanto ao segundo tema (igualmente com repercussão geral), que diz respeito à proteção da segurança jurídica, especialmente da confiança dos cidadãos (eleitores e candidatos), em face das mudanças na jurisprudência em matéria eleitoral que têm repercussão na ordem normativa que rege os pleitos eleitorais.
O caso apresentado à Corte era deveras peculiar. O recurso extraordinário relatava que o recorrente, após exercer dois mandatos consecutivos como prefeito de determinado município, nos períodos 2001-2004 e 2005-2008, transferiu seu domicílio eleitoral e, atendendo às regras quanto à desincompatibilização, candidatou-se ao cargo de prefeito de outro município (no mesmo estado-membro) no pleito de 2008.
Na época, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral era firme em considerar que, nessas hipóteses, não se haveria de cogitar da falta de condição de elegibilidade prevista no artigo 14, parágrafo 5º, da Constituição, pois a candidatura se daria em município diverso. O TSE manteve por muitos anos entendimento pacífico no sentido de que o instituto da reeleição diz respeito à candidatura ao mesmo cargo e no mesmo território, de modo que não haveria proibição a que o prefeito reeleito em determinado município se candidatasse a cargo de mesma natureza em outro município, em período subsequente, desde que transferisse regularmente seu domicílio eleitoral e se afastasse do cargo seis meses antes do pleito.
Por isso, a candidatura do autor sequer chegou a ser impugnada pelo Ministério Público ou por partido político. Transcorrido todo o período de campanha, pressuposta a regularidade da candidatura, tudo conforme as normas (legais e jurisprudenciais) vigentes à época, o autor saiu-se vitorioso no pleito eleitoral.
Em 17 de dezembro de 2008, já no período de diplomação dos eleitos, o TSE alterou radicalmente sua jurisprudência e passou a considerar tal hipótese como vedada pelo artigo 14, parágrafo 5º, da Constituição.
Em razão dessa mudança jurisprudencial, o Ministério Público Eleitoral e a coligação adversária naquele pleito impugnaram a expedição do diploma do autor, com fundamento no artigo 262, I, do Código Eleitoral. O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, com base na anterior jurisprudência do TSE, negou provimento ao recurso e manteve o diploma do autor. Porém, no TSE, o recurso especial eleitoral foi julgado procedente e, após rejeição dos recursos cabíveis, determinou-se a cassação do diploma.
O caso descrito, portanto, revelava uma situação diferenciada, em que houve regular registro da candidatura, legítima participação e vitória no pleito eleitoral e efetiva diplomação do autor, tudo conforme as regras então vigentes e sua interpretação pela Justiça Eleitoral.
A alteração repentina e radical dessas regras, uma vez o período eleitoral já praticamente encerrado, repercute drasticamente na segurança jurídica que deve nortear o processo eleitoral, mais especificamente na confiança, não somente do cidadão candidato, mas também na confiança depositada no sistema pelo cidadão-eleitor.
Em casos como este, em que se altera jurisprudência longamente adotada, parece sensato considerar seriamente a necessidade de se modular os efeitos da decisão, com base em razões de segurança jurídica. Essa tem sido a praxe no Supremo Tribunal Federal, quando há modificação radical de sua jurisprudência. Cito, a título de exemplo, a decisão proferida na Questão de Ordem no INQ 687, em que o Tribunal cancelou o enunciado da Súmula 394, ressalvando os atos praticados e as decisões já proferidas que nela se basearam. No Conflito de Competência 7.204, fixou-se o entendimento de que “o Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Constituição Republicana, pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materiae. O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações jurisprudenciais que ocorram sem mudança formal do Magno Texto”.
Assim também ocorreu no julgamento do HC 82.959, em que declaramos, com efeitos prospectivos, a inconstitucionalidade da vedação legal da progressão de regime para os crimes hediondos (art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90, com radical modificação da antiga jurisprudência do Tribunal). Recordo, igualmente, o importante e emblemático caso da fidelidade partidária, no qual a Corte, ante a mudança que se operava, naquele momento, em antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e com base em razões de segurança jurídica, entendeu que os efeitos de sua decisão deveriam ser modulados no tempo, fixando o marco temporal desde o qual tais efeitos pudessem ser efetivamente produzidos, especificamente a data da decisão do Tribunal Superior Eleitoral na Consulta 1.398, que ocorreu na Sessão do dia 27 de março de 2007.
Ressalte-se, neste ponto, que não se trata aqui de declaração de inconstitucionalidade em controle abstrato, a qual pode suscitar a modulação dos efeitos da decisão mediante a aplicação do artigo 27 da Lei 9.868/99. O caso é de substancial mudança de jurisprudência, decorrente de nova interpretação do texto constitucional, o que impõe ao Tribunal, tendo em vista razões de segurança jurídica, a tarefa de proceder a uma ponderação das consequências e o devido ajuste do resultado, adotando a técnica de decisão que possa melhor traduzir a mutação constitucional operada.
Assim, também o Tribunal Superior Eleitoral, quando modifica sua jurisprudência, especialmente no decorrer do período eleitoral, deve ajustar o resultado de sua decisão, em razão da necessária preservação da segurança jurídica que deve lastrear a realização das eleições, especialmente a confiança dos cidadãos candidatos e cidadãos eleitores.
Talvez um dos temas mais ricos da teoria do direito e da moderna teoria constitucional seja aquele relativo à evolução jurisprudencial e, especialmente, à possível mutação constitucional. Se a sua repercussão no plano material é inegável, são inúmeros os desafios no plano do processo em geral e, em especial, do processo constitucional.
Lembre-se a observação de Peter Häberle, segundo a qual não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada (Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen). Interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública (Einen Rechssatz “auslegen” bedeutet, ihn in die Zeit, d.h. in die öffentliche Wirklichkeit stellen — um seiner Wirksamkeit willen). Por isso, Häberle introduz o conceito de pós-compreensão (Nachverständnis), entendido como o conjunto de fatores temporalmente condicionados com base nos quais se compreende “supervenientemente” uma dada norma. A pós-compreensão nada mais seria, para Häberle, do que a pré-compreensão do futuro, isto é, o elemento dialético correspondente da ideia de pré-compreensão (Häberle, Peter. Zeit und Verfassung, in: Probleme der Verfassungsinterpretation, org: Dreier,Ralf/Schwegmann,Friedrich, Nomos,Baden-Baden, 1976, p.312-313).
Tal concepção permite a Häberle afirmar que, em sentido amplo, toda norma interpretada  não apenas as chamadas leis temporárias  é uma norma com duração temporal limitada (In einem weiteren Sinne sind alle – interpretierten – Gesetzen “Zeitgesetze” – nicht nur die zeitlich befristeten). Em outras palavras, a norma, confrontada com novas experiências, transforma-se necessariamente em outra norma.
Essa reflexão e a ideia segundo a qual a atividade hermenêutica nada mais é do que um procedimento historicamente situado autorizam Häberle a realçar que uma interpretação constitucional aberta prescinde do conceito de mutação constitucional (Verfassungswandel) enquanto categoria autônoma.
Nesses casos, fica evidente que o Tribunal não poderá fingir que sempre pensara dessa forma. Daí a necessidade de, em tais casos, fazer-se o ajuste do resultado, adotando-se técnica de decisão que, tanto quanto possível, traduza a mudança de valoração. No plano constitucional, esses casos de mudança na concepção jurídica podem produzir uma mutação normativa ou a evolução na interpretação, permitindo que venha a ser reconhecida a inconstitucionalidade de situações anteriormente consideradas legítimas. A orientação doutrinária tradicional, marcada por uma alternativa rigorosa entre atos legítimos ou ilegítimos (entweder als rechtmässig oder als rechtswidrig), encontra dificuldade para identificar a consolidação de um processo de inconstitucionalização(Prozess des Verfassungswid­rigwerdens). Prefere-se admitir que, embora não tivesse sido identificada, a ilegitimidade sempre existira.
Todas essas considerações estão a evidenciar que as mudanças radicais na interpretação da Constituição devem ser acompanhadas da devida e cuidadosa reflexão sobre suas consequências, tendo em vista o postulado da segurança jurídica.
Não só a Corte Constitucional, mas também o Tribunal que exerce o papel de órgão de cúpula da Justiça Eleitoral, devem adotar tais cautelas por ocasião das chamadas “viragens jurisprudenciais” na interpretação dos preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos políticos e ao processo eleitoral.
Aqui não se pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo o processo eleitoral. Mudanças na jurisprudência eleitoral, portanto, têm efeitos normativos diretos sobre os pleitos eleitorais, com sérias repercussões sobre os direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores e candidatos) e partidos políticos. No âmbito eleitoral, portanto, a segurança jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger a estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios eleitorais.
A importância fundamental do princípio da segurança jurídica para o regular transcurso dos processos eleitorais está plasmada no princípio da anterioridade eleitoral positivado no artigo 16 da Constituição. Essa norma constitucional afirma que qualquer modificação normativa que altere o processo eleitoral poderá entrar em vigor na data de sua publicação, mas não poderá ser aplicada à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. O Supremo Tribunal Federal fixou a interpretação desse artigo 16, entendendo-o como uma garantia constitucional (1) do devido processo legal eleitoral, (2) da igualdade de chances e (3) das minorias (RE 633.703).
Em razão do caráter especialmente peculiar dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, os quais regem normativamente todo o processo eleitoral, é razoável concluir que a Constituição também alberga uma norma, ainda que implícita, que traduz o postulado da segurança jurídica como princípio da anterioridade ou anualidade em relação à alteração da jurisprudência do TSE.
O Supremo Tribunal Federal concluiu que as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral (ou logo após o seu encerramento), impliquem mudança de jurisprudência (e dessa forma repercutam sobre a segurança jurídica), não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior.
A decisão do Supremo Tribunal Federal, dotada de todos os efeitos próprios do instituto da repercussão geral, impõe uma nova diretriz para a atuação da Justiça Eleitoral, fundada no respeito incondicional à segurança jurídica como postulado do Estado de Direito. Contribui, portanto, para a estabilidade e legitimidade dos processos eleitorais, em mais um passo importante no aperfeiçoamento da democracia no Brasil. 
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).
Gilmar Ferreira Mendes é ministro do Supremo Tribunal Federal, professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB); Doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha; Membro Fundador do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); Membro da Comissão de Veneza e Membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (IDP).
Revista Consultor Jurídico, 18 de agosto de 2012

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