CARÁTER COMPENSATÓRIO
A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu que é válida a acumulação
de duas pensões por parte da viúva do cientista Haity Moussatche, cassado com
base no Ato Institucional número 5 (AI-5) durante a ditadura militar.
Referência nacional no domínio da Farmacodinâmica, Haity foi um dos fundadores
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e membro do grupo de
pensadores que idealizou a Universidade de Brasília (UnB). Os ministros
atenderam o pedido do advogado constitucionalista Luis Roberto Barroso.
Haity estava entre as dez vitimas do “Massacre de Manguinhos”, em alusão
ao bairro do Rio de Janeiro em que se localiza o Instituto Oswaldo Cruz. Na
ocasião, ele e os demais cientistas da instituição foram aposentados
compulsoriamente sob o argumento de que eram filiados ao pensamento de esquerda
e, portanto, subversivos. O destino de quase todos foi o exílio em países
diversos, onde puderam prosseguir com suas pesquisas.
Em 1986, já no governo Sarney, os cientistas foram convidados a
regressar ao Brasil, com a opção de serem reincorporados ao Instituto Oswaldo
Cruz. A fórmula adotada foi a contratação sob o regime da CLT, atribuindo-se
uma nova matrícula a cada um dos contratados. Em 1990, o Haity se aposentou
desse segundo vínculo e passou a receber uma segunda aposentadoria proporcional
ao tempo de contrato. Ele morreu em 24 de julho de 1998, ocasião em que ambas
as aposentadorias foram convertidas em pensões em favor da sua mulher, Cadem
Moussatche. Nos mais de dez anos que se seguiram, não houve qualquer impugnaçã
o à cumulação de pensões.
Em dezembro de 2009, porém, e sem que tivesse sido citada para se
defender em qualquer tipo de processo, a pensionista recebeu uma carta
comunicando a suspensão de um dos benefícios. Argumento: O Tribunal de Contas
da União teria constatado violação ao artigo 40, parágrafo 6º, da Constituição.
O dispositivo — incluído pela Emenda Constitucional 20/1998, posterior à
instituição das pensões— veda a acumulação de aposentadorias quando os cargos
sejam inacumuláveis na atividade.
A questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal, em Mandado de
Segurança impetrado contra o ato do TCU. A pensionista foi representada pelo
constitucionalista Luís Roberto Barroso, que atuou voluntariamente por estar
convencido da injustiça praticada.
Segundo o advogado, havia muitas teses convencionais para sustentar a
invalidade da decisão tomada pelo TCU. Mais importante do que isso, porém,
seria preservar o caráter compensatório da segunda pensão. Na prática, a
carreira do cientista foi arbitrariamente cindida em dois períodos, de modo que
a cumulação de proventos proporcionais —e, posteriormente, das pensões
correspondentes — foi a forma encontrada para reparar, ainda que parcialmente,
a violência por ele sofrida.
Essa tese moral foi convertida em argumento jurídico por meio de uma
interpretação teleológica do sistema constitucional em seu conjunto e, em
especial, do artigo 8º do ADCT, que constitucionalizou a anistia e previu o
dever do Estado de compensar as vítimas dos atos de perseguição política
praticados durante o regime militar. Nas palavras do advogado: “Além de
determinar a reparação das injustiças causadas, tais dispositivos tornam nulo
qualquer ato do Poder Público que pretenda extrair novas consequências
negativas dos atos de perseguição. Essa é uma forma elementar de eficácia
negativa, sem a qual se estaria admitindo que o Estado atue deliberadamente no
sentido oposto ao que a Constituição exige”.
Barroso afirmou na tribuna: “Ao voltar para o Brasil, Haity Moussatche,
fiel às suas convicções e desprendido de bens materiais, jamais pediu
formalmente a sua reintegração, promoções ou mesmo qualquer indenização.
Aceitou de bom grado, juntamente com os demais cientistas, a reparação que lhe
oferecia o governo brasileiro. Reparação mais modesta à que faria jus, mas com
a qual estava satisfeito. Especialmente pelo desagravo que foi feito aos
cientistas, em cerimônia no Instituto Oswaldo Cruz, presidida pelo então
ministro da Ciência e Tecnologia, Renato Archer”.
O argumento foi acolhido por todos os ministros que compõem a 1ª Turma
do STF. O relator, ministro Marco Aurélio, já havia concedido medida liminar
para restabelecer, de imediato, o pagamento da pensão suspensa. Na sessão de
julgamento, após relatar a excepcionalidade das circunstâncias fáticas, o
ministro reiterou sua convicção de que, como regra, o magistrado deve construir
a solução justa para o caso concreto e então buscar, na ordem jurídica, os
fundamentos técnicos que lhe dêem suporte. Ainda na visão do relator, o caso da
pensionista constituiria uma das hipóteses felizes em que a solução justa salta
aos olhos e encontra amplo amparo no Direito.
Revista Consultor Jurídico, 14 de novembro de 2012
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