“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

Lavagem de dinheiro e o conceito de organização criminosa

JOSÉ BELGA ASSIS TRAD - Advogado, Conselheiro Seccional e membro da Comissão de Relações Internacionais e Institucionais da OAB/MS
24/02/2014 07h00



A Lei 12850/2013, em vigor desde 20 de agosto de 2013, propôs-se a tipificar o delito de organização criminosa, até então inexistente na lei brasileira.

Antes da entrada em vigor da lei em comento, pelos menos outros três instrumentos normativos nacionais faziam menção ao termo “organização criminosa”, sem no entanto defini-lo: a) a Lei 9034/1995; b) a Lei 9613/1998; c) a Lei 12694/2012.

Enquanto a Lei 9034/1995 definia e regulava os meios de prova e procedimentos investigatórios que versavam sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo, a Lei 9613/1998 tipificava a lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores provenientes de crime praticado por organização criminosa.

Já a Lei 12694/2012 instituiu o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organização criminosa, definindo-a, em seu artigo 2º, “como a associação de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional”.

Até a entrada em vigor da Lei 12694/2012, não se tinha na legislação brasileira uma definição de organização criminosa. Mesmo assim, inúmeros foram os pedidos de produção de prova, em que se invocava a Lei 9034/1995 como suporte legal, e de denúncias de lavagem ou ocultação, em que se apontava, na ausência de qualquer dos crimes elencados de forma taxativa em algum dos incisos da antiga redação do artigo 1º da Lei 9613/98, a existência de uma organização criminosa para viabilizar a acusação.

Com o alerta, dos advogados e da comunidade científica, da impossibilidade de se aplicar o conceito vago, impreciso e indefinido de organização criminosa, para criminalizar condutas ou para a decretação de qualquer medida de natureza processual, muitos passaram a defender, com a finalidade de evitar o insucesso de denúncias e a nulidade de ações penais, o cabimento da definição prevista na Convenção de Palermo, ratificada pelo Brasil e inserida no ordenamento jurídico pátrio por força do Decreto Presidencial n. 5015, de 15 de março de 2004.

De acordo com o artigo 2º, “a”, da Convenção em referência, grupo organizado criminoso seria o "grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material".

Por algum tempo, prevaleceu nos Tribunais pátrios o entendimento de que bastaria a definição deste tratado internacional para se ter denúncia por lavagem ou ocultação ou os meios de investigação próprios da Lei 9034/95, até que a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, sob o fundamento de inexistir lei em sentido formal e material a tipificar o delito de organização criminosa, decidiu trancar ação penal proposta pelo Ministério Público de São Paulo, em que se imputava aos acusados de então a prática de lavagem ou ocultação, apontando-se como antecedente o crime de estelionato praticado por organização criminosa (HC 96007-SP).

Quando do julgamento da famigerada ação penal 470 no Supremo Tribunal Federal, que se deu, diga-se, em momento posterior ao julgamento do HC 96007, o Ministro Joaquim Barbosa não seguiu a jurisprudência da 1ª Turma daquela Corte e decidiu que o conceito de organização criminosa poderia ser extraído tanto da Convenção de Palermo quanto do artigo 288 do Código Penal, que tipifica o delito de quadrilha ou bando.

Alguns ministros, de que são exemplos Luiz Fux e Dias Toffoli, seguiram o relator neste ponto, causando certa dúvida sobre se o entendimento então firmado pela 1ª Turma do Supremo iria se manter ou se a partir de então iria prevalecer o que defendido pelo Ministro Joaquim Barbosa no julgamento, valendo consignar que não restou claro do acórdão qual tese foi a vencedora.

Apesar disso, duas decisões recentes do Supremo esclareceram que a jurisprudência firmada pela 1ª Turma, a partir do julgamento do HC 96007, manteve-se firme e inabalável, mesmo após o julgamento da Ação Penal n. 470, que, pelos precedentes mais recentes, veio apenas a confirmá-la.

Refiro-me à decisão proferida pelo Ministro Celso de Mello, nos autos do HC 111021-PE, em que Sua Excelência concedeu liminar para suspender o trâmite de ação penal, afirmando que “a Constituição da República somente admite a lei interna como única fonte formal e direta de regras de direito penal, aí incluída a definição de noções e diretrizes aplicáveis ao plano da repressão criminal, como a própria formulação conceitual de organização criminosa”, e enfatizando que “o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento (ora em curso) da AP 470/MG, está corroborando essa orientação, fazendo prevalecer juízo absolutório em relação às imputações penais fundadas no inciso VII do art. 1º da Lei nº 9.613/98, na redação anterior ao advento da Lei nº 12.683/2012, por entender inexistente, em nosso ordenamento positivo, legislação interna definidora do conceito de “organização criminosa””.

Na oportunidade, defendeu o Ministro decano do Supremo Tribunal Federal, “que, em matéria penal, prevalece o postulado da reserva constitucional de lei em sentido formal, pois – é sempre importante enfatizar – a Constituição da República somente admite a lei interna como única fonte formal e direta de regras de direito penal”.

Esse princípio, disse o Ministro, “além de consagrado em nosso ordenamento positivo (CF, art. 5º, XXXIX), também encontra expresso reconhecimento na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 9º) e no Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos (artigo 15), que representam atos de direito internacional público a que o Brasil efetivamente aderiu”.

Outra decisão, desta vez proferida pela Primeira Turma do Supremo, em sua composição colegiada, nos autos do HC 108715, cujo acórdão ainda não foi publicado, concluiu, conforme notícia publicada no site da Suprema Corte brasileira, pelo arquivamento de ação penal “quanto à imputação de lavagem de dinheiro, que tinha como antecedente organização criminosa”.

Segundo noticiado pelo Supremo, até o ministro Dias Toffoli, que houvera votado em outro sentido no Plenário, seguiu o voto do Ministro Marco Aurélio pelo arquivamento da ação penal, lembrando “que a questão também foi debatida no julgamento da Ação Penal (AP) 470, quando o Plenário entendeu ser necessária a existência de um tipo penal próprio para o crime de organização criminosa”.

Deste entendimento somente divergiu o Ministro Luiz Fux, cujo voto restou vencido e isolado, tendo em vista que a Ministra Rosa Weber votou também pelo arquivamento da ação penal.

Mas, mesmo que o conceito de organização criminosa previsto na Convenção de Palermo bastasse para aplicação do disposto na antiga redação do artigo 1º, VII, da Lei 9613/98 (Lei de Lavagem de Dinheiro), mas não basta, lei posterior veio a ampliar os requisitos para se ter presente uma organização criminosa.

De acordo com a definição do artigo 1º, parágrafo primeiro, da Lei 12850/2013, que tipificou a ação de promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa, “considera-se organização criminosa a associação, de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.

Salvo para beneficiar o réu, tem-se como premissa no direito positivo brasileiro que a lei não poderá retroagir (artigo 5º, XXXIX).

Porém, trata-se de lei mais benéfica ao réu, porquanto a Lei 12850/2013 exige a prática de infrações penais, ou seja, duas ou mais, ao contrário da Convenção de Palermo, para cujo conceito de organização criminosa bastava que o agente cometesse um único crime, desde que fosse considerado grave.

Conclusões: 1. A Convenção de Palermo, por não ser uma lei interna do país, única fonte formal e direta de regras de direito penal, aí incluída a definição de noções e diretrizes aplicáveis ao plano da repressão criminal, como a própria formulação conceitual de organização criminosa, não poderia e ainda não pode ser utilizada para fins de aplicação do direito penal incriminador; 2. Até a edição da Lei 12694/2012, que instituiu o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organização criminosa, não se tinha na lei interna do país, única fonte formal e direta de regras de direito penal, aí incluída a definição de noções e diretrizes aplicáveis ao plano da repressão criminal, como a própria formulação conceitual de organização criminosa, o conceito de organização criminosa; 3. Ainda que fosse possível admitir a aplicação do conceito de organização criminosa da Convenção de Palermo, deve-se alertar que a Lei 12850/2013, que tipificou a ação de promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa, veio a ampliar os requisitos legais para se tê-la presente, exigindo a prática de duas ou mais infrações penais, ao passo que a Convenção Internacional exigia a prática de apenas uma.

FONTE: FATO NOTÓRIO


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