“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

PEC DA BENGALA



O retorno do debate em torno da PEC da Bengala, como ficou conhecida a proposta de emenda constitucional que amplia de 70 para 75 anos a idade limite para a permanência de magistrados na ativa, está sendo alvo de polêmicas nos meios político e jurídico.
O Projeto de Emenda Constitucional (PEC - 475/2005), de autoria do senador Pedro Simon (PMDB-RS), foi aprovado pelo Senado em 2005, mas está parada aguardando a votação na Câmara dos Deputados há quase uma década. O texto original prevê a ampliação do limite de idade somente aos membros de tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União (TCU), porém, os meios jurídicos contemplam uma tendência de ampliação dos efeitos da PEC aos juízes e desembargadores nos tribunais estaduais.

A matéria é alvo de forte “lobby” das entidades de juízes que impediram a votação da PEC da Bengala, considerada como um empecilho à oxigenação dos tribunais. O projeto voltou à baila na tentativa de evitar a escolha de cinco novos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) pela presidente Dilma Rousseff nos próximos quatro anos. Se nos termos da PEC se deliberar, o PT poderá encerrar o segundo mandato de Dilma com a indicação de nove dos dez ministros da Corte em 16 anos no poder.
Os ministros do Supremo Tribunal Federal são escolhidos pelo Presidente da República entre os cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, os indicados são nomeados ministros pelo Presidente da República. O cargo é privativo de brasileiros natos e não tem mandato fixo: o limite máximo é a aposentadoria compulsória, quando o ministro atinge os setenta anos de idade.
O presidente e o vice-presidente do STF são eleitos por seus pares, em votação secreta, para um mandato de dois anos. A reeleição para um mandato consecutivo não é permitida. O presidente do Supremo Tribunal Federal ocupa também o cargo de presidente do CNJ. O presidente do STF é o quarto na linha de sucessão da Presidência da República, sendo precedido pelo vice-presidente da República, pelo presidente da Câmara dos Deputados e pelo presidente do Senado Federal.
Imperioso refletir o que ensejou o constituinte estipular no Texto Constitucional que as escolhas para compor a mais alta Corte do país dar-se-iam pelo Chefe do Executivo para posterior aprovação pelo Senado Federal. Fomentou-se uma perspectiva de controle das escolhas repartida entre as funções de poder, nos termos da política dos freios e contrapesos, que de certo teve uma motivação nobre em seu acolhimento, mas que cabe refletir se ainda coaduna-se com efetividade ao tempo presente que se insere.
De certo que, a maior parcela da magistratura é contrária ao aumento da idade-limite para aposentadoria dos magistrados. A ampliação atrasaria a promoção dos juízes e aumentaria o nível de insatisfação.
A grande problemática revela-se no forte poder de persuasão que a política promove não apenas em todo o processo de escolha do qual se discursa, mas na própria atuação dos tribunais, em especial atenção o STF. Por vezes, as razões da política ultrapassam as razões que a justiça visaria premiar, que o direito deveria fazer prevalecer.
Tentando-se vislumbrar uma hipotética situação a partir da confirmação da reeleição da Presidente Dilma, que se fez por apertada margem de votos, caso venha a nomear ministros mais jovens em seu novo mandato, o Supremo Tribunal Federal, hoje já aparelhado pelo Partido dos Trabalhadores após doze anos de governo, poderia impedir em caso de derrota do Partido dos Trabalhadores em 2018, que o seu sucessor, de nova ideologia político-partidária, nomeasse novos ministros, oxigenando ideias e limitando o estabelecido poder de um partido político nos destinos da nação, ideologia que já não mais contaria com legitimidade a partir de um escrutino que de reverberasse negativo.
Nota-se ainda, outro argumento em desfavor da PEC da Bengala. Se o Congresso alterar a idade-limite, a presidente Dilma Rousseff não fará nenhuma das cinco indicações dos próximos quatro anos, mas seu sucessor continuará tendo de conviver com um Supremo Tribunal Federal aparelhado, composto por ministros em sua absoluta maioria indicados pelo PT. O sucessor de Dilma Rousseff poderia indicar apenas dois ministros – os substitutos de Celso de Mello e Marco Aurélio Mello. Outros oito ministros indicados pelo PT ainda comporiam o Tribunal.
Deixando de lado motivos circunstanciais ou político-partidários, há ministros do STF que concordam com o aumento da idade-limite, pois segundo eles isso aliviaria as contas da previdência e permitiria que juízes experientes continuassem a trabalhar (isso levando-se em conta a questão também para os desembargadores). Porém, argumentam que a alteração deveria vir acompanhada de um adendo necessário para promover a renovação nos tribunais. Assim, alguém que chegasse ao topo da carreira só poderia lá permanecer por um período pré-determinado.
Particularmente entendemos que, a questão deve ser fundamentada por sua essência criadora, seus fundamentos constituintes. Os tribunais, em especial o Supremo Tribunal Federal, em casuísticas oportunidades tem deixado de lado seu dever de prestar a melhor jurisdição por restarem comprometidos por linhas ideológico-partidárias que se formaram a partir das escolhas de seus membros como um dever de fidelidade-retributiva que estes carregam.
Sabemos que direito e política possuem compatibilidades e incompatibilidades. Quando as incompatibilidades tornam-se fatos realizados ou realizáveis como se compatíveis fossem, e em larga ou importante escala, é momento de se repensar estruturalmente a questão.
Assim que, defendemos como inapropriada por falência moral a atual forma de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal (neste momento não abordaremos a questão dos desembargadores). Entendemos que, a política já alcançou seu grau de saturação tendente a insuportabilidade, particularmente no STF. As razões políticas não podem ditar o núcleo essencial das decisões tomadas pela Corte Suprema em seus julgamentos quando tocam questões de interesses político-partidários. A imparcialidade dos julgados, não neutralidade que não se exige, não pode restar corrompida e o melhor direito amesquinhado à criação de elucubrações tendenciosas com o fito de fundamentar decisões que chegam a flertar com a teratologia. Sabemos que o direito nos permite construções capazes de fundamentar que a “terra é quadrada”.
Este continuísmo comprometido com certa ideologia político-partidária acabará por amesquinhar o Supremo Tribunal Federal por seus ministros a um mero órgão tendente a referendar as políticas de interesse da situação para o qual fora nomeado para defender, em clara inversão de valores e distanciamento do escopo normativo que o constituinte concebeu o procedimento de nomeação de novos ministros.
Assim não há outra forma que se revele com efetividade para que o trem descarrilado retorne aos trilhos para os quais foram concebidos para servi-lo, que não pensar em mandatos fixos de quatro anos para ministros com o escopo de oferecer constante oxigenação às ideias já viciadas, coincidindo com a possibilidade de entrada de nova ideologia legitimada nas urnas. Assim conseguiríamos conferir, inclusive, maior legitimidade ao STF, por restarem indiretamente legitimados seus membros em consonância com as escolhas derivadas do escrutínio político realizado no país, se este for o caso, nos termos do que proporemos a seguir. Entendemos, inobstante, pela possibilidade de reeleição por mais um mandato, acompanhando a possibilidade de reeleição para Presidência da Repúbica, caso assim deseje o membro, se por deliberação volte a ser escolhido em pleito secreto (para que se revele livre e sem pressão política).
Sustentamos ainda, pelos motivos aventados, pelo contínuo processo de despolitização das escolhas, retirando o poder de escolha do Chefe do Executivo Federal (Presidente da República), que muitas vezes desconhece os candidatos que lhe são ofertados para escolha. Assim, as escolhas dar-se-iam pautadas por candidatos preenchentes dos critérios objetivos traçados, de notório saber jurídico e reputação ilibada, a partir dos títulos que o pleiteante a cadeira de ministro já ostente, pelo grau de comprometimento moral de sua atuação jurídico-profissional e pela efetiva colaboração ofertada ao mundo jurídico por seus respeitáveis posicionamentos e préstimos ao direito construído até então. O Senado continuaria referendando a escolha, promovendo os freio e contrapesos da política de uma forma menos devastadora que a hoje praticada.
Como novidade ainda, proporíamos a participação do CNJ (órgão administrativo mais alto do Judiciário, mas sem poder jurisdicional) no processo. A função do CNJ é a de controlar a atuação administrativa e financeira do Judiciário, assegurando que os magistrados cumpram seus deveres. Assim, ganharia via PEC, nova atribuição constitucional, a de referendar em primeiro a escolha.
Mas quem faria a escolha? Como essa se daria? Esta seria a grande mudança. Escolher-se-iam os novos ministros não mais o Presidente da República (escolha político-monocrática), mas todos os membros que militam no judiciário, como ocorrente com a eleição como se faz para escolha dos dirigentes da OAB. Assim, advogados públicos e privados, juízes, promotores, enfim, todos que de certa forma vivenciam a atuação do pleiteante a função de ministro do Supremo Tribunal Federal. A escolha ainda assim teria sua porção política, esta faz parte do Estado, mas teria sua força de concepção um tom mais rarefeito, priorizando-se os critérios meritocráticos hoje subjugados.
Alcançar-se-ia a máxima democratização do processo de escolha possível, a máxima legitimidade aferível, de sorte que, a política partidário-ideológica cederia espaço igualitário para todos que vivenciam o Judiciário por ofício.
O voto aberto para todos os cidadãos restaria inviabilizado por motivos óbvios, exatamente pelo desconhecimento mínimo da atuação dos pleiteantes a cadeira ministerial em suas expertises profissionais e de melhores instrumentos de avaliação.
Traçar-se-iam os requisitos objetivos mínimos para as candidaturas e as escolhas acabariam despartidarizadas, com uma carga política mais reduzida, bem mais razoável, onde se afeririam prioritariamente critérios de meritocracia.
Em apertada síntese, promover-se-ia esta substancial alteração do processo de escolha dos ministros, retirando-se o excesso de politização destas escolhas que acabam por interferir na própria qualidade da jurisdição constitucional, sem que com isso se retire a política dos “cheks in balances” em sua porção ideal, mas fornecendo com efetividade as nossas reais necessidades de mudanças.
A possibilidade de se estabelecer o preenchimento das vagas por concurso público, por alguns ventilada, também é uma alternativa, porém mais radical, quando dever-se-ia limitar os candidatos aos requisitos constitucionais de idade mínima, reputação ilibada e notório saber jurídico.
Em nome da democracia, da moralidade e de uma jurisdição constitucional verdadeiramente imparcial e mais oxigenada, encetada em um Estado Democrático de Direito, evitando-se o robustecimento exagerado de um Estado Político a partir da utilização prevalente de critérios de afinidade político-ideológico-partidários, é neste formato que reverberaríamos nossas propostas, e que deixamos para reflexão, ainda que perfunctória dos nobres colegas. Este modelo proposto inibiria o influxo deletério da política na Maior Corte do Judiciário do país, que recebeu o encargo constitucional de guardião da Constituição e que desse mister não pode descurar-se.


Professor constitucionalista
Professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista do jornal Brasil 247 e de diversas revistas e portais jurídicos. Pós graduado em Direito Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e com MBA em Direito e Processo de Trabalho pela FGV. Autor de algumas...


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