Pular para o conteúdo principal

DIREITO CIVIL ATUAL Qual é o prazo prescricional da responsabilidade contratual? (parte 3)



22 de maio de 2017, 8h00
Nas colunas anteriores, foi posto em discussão recente aresto do Superior Tribunal de Justiça[1] que concluiu ser trienal a prescrição da pretensão à responsabilidade contratual com argumentos de ordem literal, sistemática e axiológica. Na semana passada, analisou-se o fundamento literal empregado pela decisão, de modo a esclarecer que a expressão “reparação civil” constante do artigo 206, parágrafo 3º, inciso V, do Código Civil se refere em caráter primário à responsabilidade extracontratual. Cumpre agora abordar o argumento sistemático invocado pela Corte.

Trata-se de providência que se afigura de rigor, pois o dado literal é apenas o ponto de partida à devida inteligência da regra contida no artigo 206, parágrafo 3º, inciso V, do Código Civil e deve ser sucedido e complementado pelo método lógico-sistemático. Afinal, “a verdade inteira resulta do contexto, e não de uma parte truncada, quiçá defeituosa, mal redigida”[2], sendo vedado ao Direito – que é ordenamento, e não caos – não guardar uma lógica entre os seus comandos.
No direito dos contratos, a regra é a execução específica. Se houver mora, o credor poderá exigir que o devedor cumpra exatamente aquilo a que se obrigou mais as perdas e danos decorrentes da inobservância do tempo, lugar ou modo pactuados, conforme se infere da leitura dos arts. 389, 394 e 395 do Código Civil. Se houver inadimplemento definitivo, o credor poderá optar entre a execução pelo equivalente e, observados os pressupostos necessários, a resolução, além de poder exigir, em qualquer caso, o pagamento das perdas e danos, de acordo com o previsto no artigo 475 do Código Civil[3].
A coerência reclama que o credor esteja sujeito ao mesmo prazo para exercer as três pretensões que a lei põe à sua disposição para reagir diante do inadimplemento[4].
Como já foi observado, carece de sentido afirmar que o credor tem um prazo para exigir o cumprimento e outro para o pagamento da indenização[5]. Se a pretensão ao adimplemento ainda não foi encoberta pela eficácia da prescrição e, portanto, o contratante pode exigir a observância ao avençado, a lógica reclama que também lhe seja possível, no mesmo lapso temporal, responsabilizar o devedor pelos danos decorrentes do descumprimento. Pode-se afirmar o mesmo a propósito da execução pelo equivalente e da resolução. Se o credor ainda pode reclamar a prestação substitutiva ou a extinção da relação contratual, deve-se igualmente lhe reconhecer a pretensão indenizatória decorrente do inadimplemento definitivo.
Nesse cenário normativo, a entender-se incidente a regra geral contida no artigo 205 do Código Civil, e não a prescrição trienal, resta preservada a integridade do ordenamento. Diante da mora, o credor tem, como regra geral, o prazo de dez anos para exigir a execução específica. Diante do inadimplemento definitivo, a regra geral igualmente confere ao credor dez anos para exigir a execução pelo equivalente ou, observados os pressupostos legais, a resolução. Seja em caso de mora, seja em caso de inadimplemento definitivo, o credor, sempre com fundamento na regra geral, tem, em adição, os mesmos dez anos para exigir o pagamento de indenização que lhe for devida.
Segue-se daí que a orientação defendida pelo recente o julgado do Superior Tribunal de Justiça põe em xeque a racionalidade do Código nesta matéria, pois, diante de um mesmo inadimplemento, leva à aplicação do prazo trienal para a indenização e do prazo decenal para os demais direitos que são reconhecidos ao credor também em face do inadimplemento do contrato.
A hipótese de mora é ilustrativa. Nesse caso, o credor teria dez anos para exigir o cumprimento da prestação, mas apenas três para exigir a indenização decorrente da inobservância do tempo, lugar ou modo pactuados por parte do devedor. Passados três anos, o devedor poderia, assim, obter o efeito equivalente à purgação da mora sem, todavia, ressarcir os prejuízos causados ao credor, o que contrastaria com a regra constante do artigo 401, inciso I, do Código Civil. O mesmo se verifica na hipótese de inadimplemento definitivo. O credor teria então dez anos para pleitear a execução pelo equivalente ou, se cabível, a resolução, mas apenas três para reclamar o pagamento das perdas e danos decorrentes do inadimplemento. O artigo 475 do Código Civil passaria, então, a ser aplicado pela metade.
A preservação da coerência do ordenamento jurídico exige que, como regra, o credor tenha à disposição o mesmo prazo para exercer os distintos direitos que possui diante do descumprimento, a saber, a execução específica, a execução pelo equivalente ou a resolução, somadas, em todas as hipóteses, às perdas e danos decorrentes do inadimplemento. O raciocínio em sentido diverso priva de lógica e de coerência o ordenamento e, portanto, não encontra abrigo entre nós.
Na semana que vem, em sequência à análise dos fundamentos suscitados pelo aresto, será analisado de maneira crítica o fundamento axiológico empregado pelo aresto do Superior Tribunal de Justiça para defender a aplicação da prescrição trienal da pretensão à responsabilidade contratual.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

[1] REsp 1.281.594/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. j. 22.11.2016.
[2] Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 106.
[3] Martins-Costa, Judith. O árbitro e o cálculo do montante da indenização, p. 5 (Texto ainda não publicado). No mesmo sentido, Zanetti, Cristiano de Sousa. A transformação da mora em inadimplemento absoluto. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril/2014, v. 942, p. 13-14; e Zanetti, Ana Carolina Devito Dearo. Contrato de distribuição. O inadimplemento recíproco. São Paulo: GEN-Atlas, 2015, p. 121 e ss.
[4] Martins-Costa, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Do inadimplemento das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, t. II. p. 160-162; e Theodoro Jr., Humberto. Comentários ao novo Código Civil: dos atos jurídicos lícitos. Dos atos ilícitos. Da prescrição e decadência. Da prova. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. III, t. II. p. 310 e 332-334.
[5] Martins-Costa, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Do inadimplemento das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, t. II. p. 160-162; THEODORO JR., Humberto. Comentários ao novo Código Civil: dos atos jurídicos lícitos. Dos atos ilícitos. Da prescrição e decadência. Da prova. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. III, t. II. p. 333; Maluf, Carlos Alberto Dabus. Código Civil comentado: artigos 189 a 232. Atlas: São Paulo, 2009, p. 111-112 e Carneiro, Athos Gusmão. Prescrição trienal e “reparação civil”. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./set. 2010, v. 13, n. 49, p. 18-19.
·             Imprimir
·             Enviar
·             151
·             1
·             1
·              
Judith Martins-Costa foi professora adjunta de Direito Civil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É doutora e livre docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Presidente do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC) e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas (ABLJ).
Cristiano de Sousa Zanetti é professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Bacharel, mestre, doutor e livre-docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Mestre em Sistema Jurídico Romanístico, Unificação do Direito e Direito da Integração pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata. Foi vice-reitor executivo adjunto de Administração da Universidade de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2017, 8h00


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dívidas contraídas no casamento devem ser partilhadas na separação

Extraído de:   Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul    - 23 horas atrás Compartilhe O Tribunal de Justiça do Estado negou pedido de pensão alimentícia a ex-mulher e determinou assim como a partilha de dívidas do ex-casal, confirmando sentença proferida na Comarca de Marau. O Juízo do 1º Grau concedeu o pedido. A decisão foi confirmada pelo TJRS. Caso O autor do processo ingressou na Justiça com ação de separação, partilha e alimentos contra a ex-mulher. O casal já estava separado há dois anos. No pedido, o ex-marido apresentou as dívidas a serem partilhadas, sendo elas um débito no valor de cerca de R$ 4 mil, decorrente de um financiamento para custear um piano dado de presente à filha do casal, bem como a mensalidade da faculdade da jovem, no valor de R$ 346,00. Sentença O processo tramitou na Comarca de Marau. O julgamento foi realizado pela Juíza de Direito Margot Cristina Agostini, da 1ª Vara Judicial do Foro de Marau. Na sentença, a magistrada concede...

OPINIÃO Improbidade: principais jurisprudências e temas afetados pela Lei 14.230/2021

  29 de janeiro de 2022, 17h19 Por  Daniel Santos de Freitas Sem dúvidas que, com o advento da Lei 14.230/2021, que altera substancialmente a Lei 8.429/92, uma missão muito importante foi dada ao Poder Judiciário, em especial ao STJ: pacificar entraves interpretativos acerca da Lei de Improbidade (Lei 8.429/92), sob a perspectiva da lei modificadora. Pela profundidade das alterações, em que pese não ter sido revogada a Lei 8.429/92, muitos afirmam estarmos diante de uma "nova" Lei de Improbidade Administrativa. Em certos aspectos, parece que o legislador enfrentou alguns posicionamentos da corte superior que não mais se adequavam à realidade atual e editou normas em sentido oposto, de sorte a dar um ar totalmente atualizado à Lei de Improbidade, visando principalmente a conter excessos.

Legalidade, discricionariedade, proporcionalidade: o controle judicial dos atos administrativos na visão do STJ

  ESPECIAL 13/03/2022 06:55 O ato administrativo – espécie de ato jurídico – é toda manifestação unilateral de vontade da administração pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato resguardar, adquirir, modificar, extinguir ou declarar direitos, ou, ainda, impor obrigações aos administrados ou a si própria. Esse é um dos temas mais estudados no âmbito do direito administrativo e, da mesma forma, um dos mais frequentes nas ações ajuizadas contra a administração pública. Em razão do poder discricionário da administração, nem todas as questões relativas ao ato administrativo podem ser analisadas pelo Judiciário – que, em geral, está adstrito à análise dos requisitos legais de validade, mas também deve aferir o respeito aos princípios administrativos, como os da razoabilidade e da proporcionalidade. Cotidianamente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) é acionado para estabelecer a correta interpretação jurídica nos conflitos que envolvem esse tema. Ato que el...