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OPINIÃO O Poder Judiciário Eletrônico e as prerrogativas da advocacia


Instalada a pandemia do coronavírus, o Supremo Tribunal Federal adotou medidas para proteger a vida dos seus ministros e dos demais que frequentam as suas instalações, suspendendo o atendimento presencial e, surpreendentemente, estendendo o plenário virtual para todos os casos submetidos ao seu julgamento — Emenda Regimental STF n. 53, de 18 de março de 2020. Doravante, todos os processos de competência do STF, inclusive as ações originárias, poderão, a critério do relator ou do ministro vistor com a concordância do relator, serem submetidos a julgamento em listas de processos em ambiente eletrônico (artigo 23B do RISTF).
A medida é inconstitucional, pois estabelece no maior órgão de jurisdição brasileira julgamentos secretos sobre temas caríssimos da cidadã Constituição de 1988. Como bem se expressou o ministro Marco Aurélio de Mello em entrevistas no ano de 2016, "plenário virtual não é plenário: o sentido de colegiado é a troca de ideias, é nos completarmos mutuamente", arrematando que o julgamento de listas no plenário virtual implica "retrocesso". Agora, com a ampliação do plenário virtual para todos os processos e recursos da competência do STF, o que era um mero retrocesso converteu-se na maior afronta à Constituição justamente por aquele que deveria defendê-la.

Rasgando a Constituição e a lei, o STF estabeleceu que as sustentações orais da advocacia no plenário virtual serão encaminhadas por meio eletrônico após a publicação da pauta e até 48 horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual.
A Constituição Federal de 1988, seguindo o curso histórico das conquistas civilizatórias da humanidade, na esteira da law of the land, consagrou o princípio do devido processo legal, descrito pelo brilhante Siqueira Castro ("O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituição do Brasil". Forense: 1989, p. 7) como "a suprema garantia das liberdades fundamentais do indivíduo e da coletividade em face do Poder Público", tudo a significar um processo leal, justo e adequado, cujo direito de defesa constitui forte peia à ação arbitrária do Estado. Não foi por outro motivo que a Carta Magna gizou em seu artigo 93, IX, que os julgamentos são públicos. O ideal de processo leal, justo e adequado impõe a igualdade no tratamento das partes. Gustavo Badaró (Processo Penal. RT: 2015, p.55.) descreve que "a igualdade de partes garante a paridade de armas entre sujeitos parciais". A sustentação oral gravada e antecipada ao STF, em qualquer tempo e em qualquer crise, afronta os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da paridade de armas e da indispensabilidade do advogado.
Uma parte do exercício do direito de ação e do amplo e irrestrito direito de defesa se perfaz no diálogo, nos debates entre os atores da Justiça, cujo ápice é a sustentação oral nos julgamentos. O apóstolo Paulo marcou a humanidade com a mensagem "a letra mata, mas o espírito vivifica". A letra gravada em um processo é vivificada na presença das pessoas humanas postadas diante dos magistrados. É o odor do esforço daqueles que trabalham por justiça que faz produzir as decisões mais justas possíveis.
Não foi por outro motivo que o artigo 7.º, IX, do EOAB prescreveu o direto do advogado sustentar oralmente as razões de seus clientes nos órgãos colegiados de Justiça. "A liberdade da palavra do advogado nas sessões e audiências judiciárias é um dos mais importantes e insubstituíveis meios de sua atuação profissional... a participação oral dos advogados nos tribunais e órgãos colegiados contribui decisivamente para o esclarecimento dos magistrados" (Lôbo, Paulo. "Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB". Saraiva: 2011, p. 81). Fácil concluir que as novas disposições do STF em determinar a gravação e o envio antecipado das sustentações orais à corte estão em clara ofensa ao disposto no artigo 7.º, IX, X, XI e XII, da Lei n. 8.906/94.
Sensíveis que estamos às necessidades de segurança e às medidas de proteção da vida, acreditamos que os plenários virtuais deveriam ganhar a forma de telepresenciais, permitindo à advocacia e à sociedade o acompanhamento e a participação em tempo real nos julgamentos dos processos constitucionais no STF, normatizando, ainda, os tribunais os despachos eletrônicos  as conversas entre advogados e juízes pelos meios virtuais.
No distante ano de 1958, na 1.ª Conferência Nacional da Advocacia, Seabra Fagundes, citado por Paulo Lôbo (op. cit), disse: "Os tribunais, de um modo geral, são indiferentes ao emperramento e ao anacronismo do processo, e se alguns têm a preocupação plausível da celeridade, pensam atingi-las apenas com a supressão dos debates, alma das deliberações colegiais. E nesse açodamento de julgar (julgar para devorar pautas e não para fazer justiça) há os que tem por incômodo o uso da palavra pelo advogado. Se não o suprimem, porque é lei, desprestigiam-no com ar de enfado e desinteresse com o que ouvem. Deslembram-se de que o advogado que assoma à tribuna cumpre o dever de postular em nome de outrem e perante os titulares remunerados pelo Estado para conhecer desta postulação. Não pede obséquio de ser ouvido. Usa o direito de ser ouvido".
É direito que deve ser respeitado pelos Tribunais, sempre, a manutenção do julgamento dos processos em ambiente que permita a participação da advocacia em tempo real (plenário presencial e ou telepresencial). Seabra Fagundes não está mais vivo para testemunhar o STF, definitivamente, silenciar a advocacia em suas tribunas, foi poupado pelo Criador de mais uma frustração. O vírus que ameaça a vida assombra, também, o direito de defesa e as prerrogativas da advocacia.
Alexandre Ogusuku é Conselheiro Federal OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Prerrogativas do CFOAB.

Revista Consultor Jurídico, 14 de abril de 2020, 20h33

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