Pular para o conteúdo principal

Artigo: “Comentários à ‘Lei da Pandemia’: Análise Detalhada das Questões de Direito Civil e Direito Processual Civil"


Compartilhar no WhatsApp 
   
sexta-feira, 12 de junho de 2020 às 13h59
Comentários à ‘Lei da Pandemia’: Análise Detalhada das Questões de Direito Civil e Direito Processual Civil, por Pablo Stolze Gagliano e Carlos E. Elias de Oliveira
1. Introdução
Cidades desertas. Comércios fechados. Pessoas evitando a aproximação física com as outras.
Um microscópico inimigo conseguiu viajar desde a pacata cidade chinesa de Wuhan para causar esse cenário desolador no mundo inteiro.
Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) externou seu estado de incerteza diante desse patógeno invisível por meio da “Declaração de Emergência em Saúde Pública”. Em 11 de março, ela se rendeu totalmente à sagacidade aterrorizante desse vírus, declarando situação de pandemia em virtude da Covid-19.


No Brasil, o take desse filme - cujo gênero vacila entre suspense e terror – começou a ser gravado em fevereiro.
No dia 3 daquele mês de fevereiro, o Ministério da Saúde editou a Portaria GM/MS nº 188/2020, para declarar “Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional” (ESPIN). Essa data pode ser considerada o momento em que, ao brado do “Luz, Câmera e Ação” e da batida da claquete, o vilão invisível entra em cena.
Cidadãos já passam a evitar sair às ruas. A Bolsa de Valores entra em turbulência. O abraço fácil cede para as saudações distantes com as mãos. As cidades brasileiras passavam a se escurecer embaixo da nuvem de pavor soprada pelas notícias do aumento exponencial de mortes de nossos irmãos italianos: os dois falecimentos registrados em 23 de fevereiro na Itália saltaram para mais de 13.155 despedidas eternas em 1º de abril . 
Em 6 de fevereiro de 2020, nasce a Lei da Covid-19 (Lei nº 13.979/2020), que prevê medidas destinadas ao enfrentamento da situação emergencial, como a quarentena e o isolamento.
Os atos infralegais da União e dos Estados se espalham como se estivessem a imitar a multiplicação viral atroz da Covid-19 . Governadores decretam medidas de restrição de circulação de pessoas e de comércio. Por exemplo, em 11 de março de 2020, o Distrito Federal já havia restringido o funcionamento de estabelecimentos comerciais para evitar a circulação e a aglomeração de pessoas, conforme Decreto DF nº 40.509, de 11 de março de 2020. 
O Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, reconhece estado de emergência pública para flexibilizar as rígidas regras orçamentárias.
Todo esse ambiente de terror cinematográfico, que lembra filmes de guerra (com a diferença de que o letal inimigo é invisível e ainda não apareceram heróis para nos salvar), impactou severamente as relações de Direito Privado.
Sem dinheiro, empresas deixam de pagar suas contas.
Sem saída, trabalhadores perdem seus empregos.
Acurralados, inquilinos suspendem o pagamento do aluguel de sua moradia e levantam as mãos ao céu rogando por um milagre para não serem despejados.
Pais e mães, humilhados por não conseguirem dar o “pão de cada dia” aos filhos, tremem diante da prisão por dívida e da possibilidade de vir a conhecer, atrás das grades, o feroz vilão microscópico.
Síndicos vedam a livre circulação nas áreas comuns dos prédios, despertando a revolta de alguns condôminos menos amantes da prudência.
Membros de pessoas jurídicas e de condomínios não se arriscam a engrossar a lista de vítimas e cogitam transformar as assembleias presenciais em conclaves virtuais.
Praticamente todos os ramos do Direito Civil foram atingidos sem que a legislação estivesse adequadamente preparada para esse momento de caos causado pela pandemia.
Os vários juristas, às vezes com ímpetos acrobáticos, tentam brandir as armas que têm para dar soluções aos inúmeros problemas nas relações particulares. Vários artigos doutrinários são publicados: a Covid-19 já se torna o epicentro das produções acadêmicas.
O Congresso Nacional se move para socorrer juridicamente os particulares.
O Senado Federal, por meio do Projeto de Lei nº 1.179/2020, dá à luz o RJET (Regime Jurídico Emergencial e Transitório) de Direito Privado.
A proposição, talhada por uma legião de civilistas (que participaram direta ou indiretamente da gestação), esforça-se por abastecer todas as áreas do Direito Civil, desde a Parte Geral (ex.: prescrição e decadência) até a de Sucessões (ex.: prazos de inventários), passando pela de Família (ex.: prisão civil domiciliar), pela das pessoas jurídicas (ex.: assembleias virtuais), pela das Coisas (ex.: condomínio edilício e usucapião) e pela dos contratos.
Duas são as inspirações para a criação de uma lei emergencial e temporária.
A primeira é da França da Primeira Guerra Mundial. Em 1918, os franceses editaram a famosa Lei Faillot para tratar da revisão de contratos que haviam sido atingidos pelas contingências econômicas de uma guerra. Essa lei era transitória, limitada aos três meses seguintes ao encerramento da conflagração.
A segunda é de parlamentos de outros países, especialmente o alemão. Diante dos impactos da pandemia nas relações jurídico-privadas, a Alemanha editou a Lei de Atenuação dos Efeitos da Pandemia da Covid-19 no Direito Civil, Falimentar e Recuperacional. Trata-se de uma lei transitória que flexibiliza contratos e outras figuras de direito privado em meio aos escombros de incertezas causadas pela Covid-19. 
Amigo leitor, nosso foco é fazê-lo inteirar-se dos principais aspectos de Direito Civil tratados na lei emergencial, tudo em forma de comentários aos seus dispositivos. Chamaremos esse novo diploma de Lei do RJET (Lei do Regime Jurídico Emergencial e Transitório).
Salientamos, por fim, que o Presidente da República vetou dispositivos nucleares do Projeto de Lei original, inclusive no que toca às relações contratuais, o que merecerá, oportunamente, em artigo próprio, a nossa reflexão crítica.
2. Disposições Gerais (arts. 1º e 2º)
Art. 1º Esta Lei institui normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado em virtude da pandemia do coronavírus (Covid-19).
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se 20 de março de 2020, data da publicação do Decreto Legislativo nº 6, como termo inicial dos eventos derivados da pandemia do coronavírus (Covid19).
Art. 2º A suspensão da aplicação de normas referidas nesta Lei não implica sua revogação ou alteração.
Três diretrizes iluminam o diploma emergencial.
De um lado, a Lei do RJET não modifica nenhum dispositivo do Código Civil nem de nenhuma outra lei. Por quê? Isso foi proposital. A referida lei não pretende estabelecer nenhuma regra permanente, não objetiva revogar nada. Colima, apenas, suspender normas que se mostrem incompatíveis com o período excepcional de turbulência social, econômica e pessoal causada pela pandemia da Covid-19. É o que diz o art. 2º. Portanto, a primeira diretriz da Lei da Covid-19 é a de que suas normas se endereçam apenas a fatos jurídicos “aturdidos" com o caos socioeconômico causado pela pandemia.
De outro lado, a segunda diretriz é a de que o RJET tem uma data inicial bem precisa: 20 de março de 2020, data do Decreto Legislativo nº 6. Di-lo textualmente o parágrafo único do art. 1º. A ideia é que, a partir daí, haveria uma presunção absoluta de que as rebordosas que agitavam as relações de Direito Privado provinham da pandemia. O legislador escolheu esse marco porque, com o referido decreto, o Parlamento – que é a Casa do Povo e dos Estados – reconheceu a notoriedade da desordem causada pelo irrequieto vírus, a ponto de autorizar flexibilizações orçamentárias na forma do art. 65 da LRF.
Dessa segunda diretriz, surge a seguinte dúvida: para o período anterior à supracitada data, a pandemia pode ou não ensejar revisões contratuais, suspensão da prescrição ou de outros fenômenos de Direito Privado?
A resposta é um sonoro sim.
Conforme já vimos na “Introdução”, pelo menos desde 3 de fevereiro de 2020 (data da Portaria GM/MS nº 188/2020), a dinâmica das relações de Direito Privado já estava perturbada pelos transtornos da pandemia. Há, porém, uma observação: a análise deverá ser feita com base nas normas e princípios gerais do Direito Civil, sem levar em conta as regras específicas do RJET.
Por fim, a terceira diretriz da Lei do RJET é a de que, em vários dispositivos, ela apenas positiva regras que já seriam alcançáveis com base em princípios ou regras anteriores. Em outras palavras, ainda que não houvesse a Lei do RJET, vários casos concretos haveriam de ser  resolvidos da mesma maneira. O diploma emergencial apenas objetivou dar maior facificidade, cristalizando, em texto legal, soluções que tinham um apoio na base mais fluida de princípios e de cláusulas gerais.
Por exemplo, o impedimento e a suspensão, sem a lei do RJET, poderiam ser defendidos com base no princípio do "contra non valetem agere non currit praescriptio". A lei da RJET deixa clara, de vez, essa paralisação dos prazos.
Dessa terceira diretriz decorre que, para fatos jurídicos anteriores à Lei do RJET, os juristas poderão alcançar, a depender do caso concreto, soluções similares à decantada no texto da nova lei emergencial. O fundamento jurídico, porém, não será a nova Lei, e sim princípios e cláusulas gerais já vigentes antes da criação do RJET.
Essa observação é fundamental para deixar claro que a Lei do RJET, em momento algum, haverá de desrespeitar a vedação à retroatividade (mesmo a mínima) diante de atos jurídicos perfeitos, direito adquirido e coisa julgada.
Afinal, se, no momento em que as partes celebram um contrato ou um outro ato jurídico perfeito, elas levam em conta as regras de Direito Material da época para desenhar as condições contratuais, como o preço, a depender das regras materiais em vigor, o preço poderá ser maior ou menor. Não pode, portanto, o legislador, posteriormente, mudar essas regras de Direito Material, sob pena de incorrer em vedada retroatividade contra ato jurídico prefeito.
Entretanto, casos concretos anteriores poderão ser resolvidos da mesma maneira como anunciado na Lei do RJET por uma verdadeira coincidência jurídica: os princípios e as cláusulas gerais anteriores podem desaguar no mesmo resultado prático.
3. Comentários à Lei: Impactos na Parte Geral
O novo diploma repercutiu em institutos de grande importância da Parte Geral do Código Civil: no âmbito da prescrição e da decadência e na disciplina das pessoas de jurídicas de Direito Privado.
3.1. Prescrição e Decadência (art. 3º)
Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020.
§ 1° Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional.
§ 2° Este artigo aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
NOÇÕES GERAIS
Para a devida compreensão deste dispositivo, algumas noções precisam ser revistas.
A legislação prevê diversas causas impeditivas e suspensivas da prescrição.
A priori, não há diferença ontológica entre impedimento e suspensão da prescrição, pois ambas são formas de paralisação do prazo prescricional.
A sua diferença fática é quanto ao termo inicial, pois, no impedimento, o prazo nem chegou a correr; enquanto na suspensão, o prazo, já fluindo, “congela-se”, enquanto pendente a causa suspensiva.
Por exemplo, o casamento entre devedores fará suspender a prescrição já iniciada, por aplicação do art. 197, I, do CC.
O mesmo dispositivo, porém, autoriza uma hipótese de impedimento do curso prescricional se a dívida for contraída durante a constância da sociedade conjugal.
Exemplificando: João é credor de Maria de uma dívida já vencida e exigível, constante em instrumento público ou particular, estando em curso o prazo prescricional (para se formular a pretensão condenatória, via ação de cobrança) de cinco anos (na forma do art. 206, § 5.º, CC). Dois anos após a data do vencimento da dívida, contraem matrimônio, por força do qual o prazo prescricional ficará suspenso até a dissolução da sociedade conjugal. No caso, decretada a separação ou o divórcio, o prazo prescricional (suspenso durante o tempo de convivência conjugal) continuará a correr, computados os dois anos transcorridos, até que o credor atue ou seja atingido o limite máximo da prescrição. O matrimônio, no caso, atuou como uma causa suspensiva da prescrição. Se, todavia, Maria, respeitado o regime de separação de bens, contrai a dívida perante João, no curso do casamento, o prazo prescricional ficará impedido de correr até a dissolução da sociedade conjugal.
Feitos esses esclarecimentos iniciais, voltemos a nossa atenção ao dispositivo sob análise.
FUNDAMENTOS DA PARALISAÇÃO DOS PRAZOS
Pretendeu o legislador, tendo em vista a grave situação socioeconômica desencadeada pela pandemia do coronavírus, obstar o transcurso do prazo prescricional, visando, com isso, a resguardar os interesses dos credores em geral.
Com efeito, ficaram impedidos ou suspensos (paralisados) prazos prescricionais para se formular pretensão em juízo, o que se explica pelas dificuldades de variada ordem derivadas da pandemia, inclusive com reflexo na rotina de trabalho dos Tribunais.
Nessa linha, transcrevemos a justa ponderação de RODRIGO MAZZEI e BERNARDO AZEVEDO:
Ademais, há que se registrar a ausência do exercício da advocacia privada no rol de atividades essenciais previstas nos decretos que regulamentaram o § 8º da lei 13.979/202015, de modo que, a toda evidência, a advocacia privada está sujeita às restrições de quarentena e isolamento social eventualmente impostas pelo Poder Público.
Dessa forma, é possível afirmar que, a depender das medidas impostas pelo Poder Público em determinada região, haverá, sim, justo motivo que impedirá a parte e o advogado de distribuírem ações judiciais antes do término do prazo prescricional.
E não são só os impactos no funcionamento regular do Poder Judiciário que justificariam o congelamento da fluência dos prazos prescricionais e decadenciais. A própria adoção de providências para viabilizar o ajuizamento de uma ação judicial nesse período excepcional ficou comprometida, como reunir documentos, obter certidões, contratar profissionais (advogados, peritos etc.). Para tais diligências, há necessidade de deslocamento para repartições públicas e privadas, o que era inviável em virtude do fechamento de estabelecimentos por atos dos governos locais ou, no mínimo, era desaconselhável por força de imperativos de cautela para evitar a contaminação viral.
Esse cenário justifica a paralisação dos prazos prescricionais, consoante o já citado princípio do "contra non valentem agere non currit praescriptio". 
NATUREZA SUBSIDIÁRIA DA REGRA DE PARALISAÇÃO
Com efeito, de acordo com o caput do referido art. 3º, os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da vigência da nova Lei até 30 de outubro de 2020.
Mas observe.
Trata-se de uma regra supletiva ou subsidiária, pois, conforme o § 1º, havendo previsão legal específica de impedimento, suspensão - ou até mesmo interrupção - do prazo prescricional, esta prevalecerá em razão da regra constante no 13 caput do artigo sob comento.
Assim, por exemplo, caso um prazo prescricional já não estivesse correndo contra um credor, ausente do Brasil a serviço da União (art. 198, II, CC), sem previsão do retorno, a regra constante neste art. 3º (no sentido da paralisação do prazo até 30 de outubro de 2020) não se aplicaria.
Ressalvamos apenas a hipótese de ele retornar ao Brasil antes do referido termo final, caso em que a norma de reserva seria aplicada, nos termos do próprio § 1º do artigo sob comento.
APLICABILIDADE À DECADÊNCIA
Dispõe o § 3º que as regras estabelecidas no artigo 3º (referentes ao impedimento ou suspensão do prazo prescricional) também se aplicam ao prazo decadencial, a exemplo daqueles previstos no art. 26 do Código de Defesa do Consumidor (30 ou 90 dias) para se exercer o direito potestativo de se reclamar em Juízo. Trata-se, aqui, de uma exceção legal à regra geral (prevista no art. 207 do Código Civil) de implacabilidade da fluência do prazo decadencial.
SITUAÇÕES JURÍDICAS ANTERIORES À ENTRADA EM VIGOR DA LEI DO RJET
A paralisação ampla e irrestrita dos prazos prescricionais, prevista no art. 3º da Lei do RJET, só se aplica entre a entrada em vigor dessa lei e final de outubro de 2020.
Indaga-se: para o período anterior à entrada em vigor da Lei do RJET, é possível defender uma paralisação específica dos prazos prescricionais?
Entendemos que sim, a depender do caso concreto, com base no princípio do "contra non valentem agere non currit praescriptio". Não se ignora que há quem defenda que as hipóteses de suspensão e impedimento da prescrição estão arroladas taxativamente na lei ("numerus clausus"), mas o próprio STJ admite outras situações de paralisação dos prazos mesmo sem previsão legal, a exemplo da Súmula nº 229/STJ (“O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão”) . No caso da pandemia do coronavírus, é razoável considerar que, a partir de 3 de fevereiro de 2020 (data da Portaria GM/MS nº 188/2020), já se pode presumir que a pandemia já impunha dificuldades para os titulares de direitos violados adotarem atos de cobrança, a bloquear a fluência do prazo prescricional, salvo prova em contrária no caso concreto . Antes de 3 de fevereiro de 2020, apesar de os rumores acerca do perigo da Covid-19 já estarem ecoando no Brasil, não é razoável entender que tenha havido obstáculos ao titular do direito para formular a sua respectiva pretensão em juízo, salvo prova contrária no caso concreto (ex.: o titular do direito estava retido na Cidade de Wuhan em janeiro de 2020 sem poder voltar ao Brasil para cobrar a satisfação de seu direito).
PROBLEMATIZAÇÃO: POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
Como já dito, entre a data da entrada em vigor da Lei do RJET e 30 de outubro de 2020, estão paralisados os prazos prescricionais e decadenciais por força do art. 3º.
Daí se indaga: o negligente titular de um direito, que de tão relapso, só vem a praticar algum ato de cobrança (exigibilidade) de seu direito (como propor uma demanda) após 8 anos, às vésperas dos últimos dias do prazo prescricional, poderá ou não alegar, a seu favor, a paralisação de que trata o art. 3º da Lei do RJET?
De um lado, por uma interpretação teleológica, é viável restringir o sentido do art. 3º da Lei do RJET com o objetivo de estabelecer que a paralisação prevista nesse preceito transitório se destina a proteger apenas os prudentes titulares, os quais só não exigiram a satisfação de seus direitos até final de outubro de 2020 em virtude dos transtornos causados pela pandemia.
Não é, pois, objetivo do art. 3º da Lei do RJET beneficiar, como verdadeiros "free riders" , os negligentes titulares, que, mesmo se não tivesse havido pandemia alguma, haveriam de seguir na inércia.
Desse modo, os titulares que, depois de cessados os efeitos da pandemia, demorarem muito para praticar algum ato de cobrança de seus direitos poderiam ser considerados negligentes e, assim, em relação a eles, o art. 3º da Lei do RJET teria perdido eficácia: a fluência do prazo prescricional ou decadencial para eles não seria considerado congelado até outubro de 2020.
A questão aí é definir: a partir de quando o titular de um direito poderia ser considerado negligente para esse efeito?
A resposta é a de que, em regra, deve-se olhar o caso concreto para verificar qual seria o prazo razoável para que o titular de um direito pratique algum ato de cobrança da dívida (que não necessariamente seria a propositura da demanda).
Nesse diapasão, entendemos que 1º de janeiro de 2021 deve ser considerado como um referencial: titulares que só pratiquem atos de cobrança após essa data devem ser considerados negligentes e, portanto, para eles, a paralisação de prazos prescricionais perdeu a eficácia. A data de 1º de janeiro de 2021 é usada como referencial em uma perspectiva (razoável) de superação dos efeitos mais graves da pandemia a partir dessa data.
A única exceção se daria na hipótese de as medidas de restrição de circulação de pessoas derivadas da pandemia perdurarem para além de janeiro de 2021, caso em que o titular do direito deverá praticar o ato de cobrança em um prazo razoável após a cessação dessas restrições de circulação, sob pena de perda da eficácia da suspensão do prazo prescricional. 
Este prazo máximo, em nosso sentir, deve ser de 60 dias. Trata-se da aplicação do postulado da razoabilidade na acepção de equidade.
Em suma, perde eficácia a paralisação do prazo prescricional previsto no art. 3º se o titular do direito não praticar nenhum ato de cobrança (exigibilidade) até 1º de janeiro de 2020 ou, se for o caso, em um prazo máximo de 60 dias após a cessação das medidas de restrição de circulação de pessoas decorrentes da pandemia.
Consideramos essa interpretação restritiva adequada.
De outro lado, contra tal interpretação teleológica restritiva, podem-se brandir dois argumentos: (1) essa interpretação geraria uma indefinição para as partes no momento da contagem do prazo prescricional; (2) se o legislador quisesse, teriaprevisto expressamente essa perda da eficácia do art. 3º para titulares negligentes.
Esse assunto ainda haverá de gerar controvérsias.
O ideal é que todos os juristas, no momento em que forem contar prazos prescricionais, ainda se recordem dessa “janela de paralisação” (da entrada em vigor da Lei do RJET até o final de outubro de 2020).
Tudo quanto aqui foi exposto é extensível à suspensão do prazo decadencial (art. 3º, § 2º, da Lei do RJET) e também deve se aplicar, "mutatis mutandi", à paralisação da fluência dos prazos de usucapião prevista no art. 10, na forma do exposto mais à frente.
3.2. Pessoas Jurídicas de Direito Privado (arts. 4º - vetado – e 5º)
Art. 4º - Dispositivo vetado. Os coautores, em breve, pretendem publicar artigo com reflexões críticas acerca desse veto.
Art. 5º A assembleia geral, inclusive para os fins do art. 59 do Código Civil, até 30 de outubro de 2020, poderá ser realizada por meios eletrônicos, independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica.
Parágrafo único. A manifestação de participantes poderá ocorrer por qualquer meio eletrônico indicado pelo administrador, que assegure a identificação do participante e a segurança do voto, e produzirá todos os efeitos legais de uma assinatura presencial.
COMENTÁRIOS GERAIS
O art. 59 do Código Civil, inserido no capítulo dedicado às associações, trata da assembleia geral, o seu órgão máximo.
Compete, pois, privativamente à Assembleia Geral, ex vi do disposto no referido artigo, segundo a redação alterada pela Lei n. 11.127/2005:
I – destituir os administradores;
II – alterar o estatuto.
Ressalve-se, todavia, que as deliberações a que se referem os incisos I e II demandam “deliberação da assembleia especialmente convocada para esse fim, cujo quorum será o estabelecido no estatuto, bem como os critérios de eleição dos administradores”.
Nessa linha, nos termos do art. 5º do novo diploma, toda assembleia geral, inclusive para os fins do art. 59, poderá ser realizada pelos meios eletrônicos, caso em que a manifestação dos participantes poderá ocorrer por qualquer meio virtual indicado pelo administrador e produzirá todos os efeitos legais de uma assinatura presencial.
Trata-se de uma previsão importante, que respeita as diretrizes sanitárias, e afasta eventual nulidade pela ausência de observância de requisito formal consistente no pregão e encontro presenciais.
OPERACIONALIZAÇÃO PRÁTICA
Do ponto de vista operacional, o administrador está autorizado, pelo art. 5º, a definir, sozinho, o meio eletrônico que será utilizado, desde que ele garanta identificação e segurança do voto. É claro que a assembleia – que é soberana - pode deliberar por outro meio eletrônico para os encontros seguintes, de maneira que apenas a primeira assembleia será na forma indicada pelo administrador.
Apesar do silêncio legal, a comunicação entre os participantes da assembleia não precisa ser oral e pode ser por escrito também.
Ademais, entendemos que esse meio deve permitir comunicação instantânea (on-line), como plataformas de chat (como um grupo no WhatsApp) ou de videoconferências (como o aplicativo Zoom). Isso porque as assembleias precisam garantir que os participantes expressem suas motivações para convencer ou dissuadir os demais.
Para a lavratura da ata da assembleia virtual, não há necessidade de assinatura física específica de cada membro. Tampouco há necessidade de os membros se valerem de uma assinatura eletrônica no âmbito do ICP-Brasil (Medida Provisória nº 2.200-2/2001). Entendemos que o administrador poderá declarar, na própria ata, os votos que foram dados, atestando que, após a sua lavratura, todos os associados consentiram com o seu teor. A ata, pois, será redigida unilateralmente pelo administrador atestando o que viu e ouviu na plataforma eleita. Se a plataforma utilizada detiver um chat, convém que o administrador anexe cópia das conversas de cada membro, o que servirá de prova. E nada impede que toda a assembleia seja gravada, o que constará na respectiva ata.
Por fim, para o cadastro de cada membro, se o administrador tiver o número telefônico ou e-mail de cada um deles, ele poderá valer-se dessas vias para viabilizar a comunicação eletrônica. Se não tiver, o caso é de o administrador buscar entrar em contato com o membro pela via cabível para cadastrá-lo na plataforma virtual a ser utilizada.
4. Comentários à Lei: Impactos no Direito dos Contratos
4.1. Contratos em Geral (arts. 6º - vetado – e 7º - vetado)
Art. 6º - Dispositivo vetado. Os coautores, em breve, pretendem publicar artigo com reflexões críticas acerca desse veto.
Art. 7º - Dispositivo vetado. Os coautores, em breve, pretendem publicar artigo com reflexões críticas acerca desse veto.
4.2. Contrato de consumo (art. 8º)
Art. 8º Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e medicamentos.
DIREITO DE ARREPENDIMENTO: CONCEITUAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO
O art. 49 do CDC consagra o direito do arrependimento em favor do consumidor no caso de contratos celebrados a distância (fora do estabelecimento comercial), “especialmente por telefone ou a domicílio”.
Nessa linha, o consumidor tem direito de, nos sete dias seguintes ao recebimento do produto ou do serviço ou à data da celebração do contrato, desfazer o contrato e receber de volta todos os valores já pagos com atualização monetária.
Esse prazo de 7 dias é designado de “prazo de reflexão”.
Não se trata de uma resilição unilateral (prevista no art. 473 do CC), pois esta é, na verdade, uma hipótese de inadimplemento absoluto causado pelo fato da vontade unilateral e imotivada da parte. E, por ser um inadimplemento, a parte haverá de suportar todas as consequências da inadimplência, como o pagamento de multas e de eventual indenização. Trata-se, sim, de uma condição resolutiva puramente potestativa admitida por lei: o consumidor desfaz o contrato imotivadamente por vontade unilateral e sem dever de pagar qualquer multa por não se tratar de inadimplemento contratual.
Igualmente, não se cuida de uma resolução motivada do contrato por vício do produto ou do serviço (arts. 12 e seguintes do CDC) ou por descumprimento, pelo fornecedor, de deveres anexos (como o dever de informação, de proteção, de cooperação, de qualidade etc.). Estes últimos representam hipóteses de desfazimento de contrato por justo motivo a impor, inclusive, que o fornecedor se submeta a todas as punições decorrentes do inadimplemento contratual, como pagar indenização.
O fundamento do direito de arrependimento do art. 49 do CDC ("ratio essendi”) é o de que o consumidor, nos contratos a distância, não vê o produto nem amostras do serviço contratado, além de, notadamente em compras pela internet, não haver tido um auxílio técnico na realização da contratação e sequer acesso a todas as informações do serviço e do produto. Por isso, nesses casos, é assegurado ao consumidor um prazo de reflexão para impunemente desistir do contrato.
Já há, na doutrina, quem empreste interpretação extensiva ao dispositivo para afastar ou flexibilizar o direito de arrependimento do art. 49 do CDC para casos que escapem a essa "ratio essendi".
É o caso, por exemplo, de compras de produtos de consumo imediato adquiridos, no mesmo dia, por telefone, por aplicativos ou pela internet. Se alguém contacta um restaurante oriental e pede um Yakisoba em serviço de “delivery” (entrega domiciliar), não faz sentido que, após receber o prato, o consumidor exerça o direito de arrependimento após 7 dias. Não é razoável tal interpretação e escapa aos imperativos da boa-fé objetiva, pois: (1) a comida já terá perecido e (2) o regime de “delivery” não trouxe nenhuma diferença prática em relação aos pedidos feitos dentro do restaurante: assim como o cliente pede um prato ao garçom apenas com base na descrição constante no cardápio, o cliente que pede a comida para entrega em regime de “delivery” igualmente faz seu pedido apenas com apoio na descrição disponibilizada no cardápio virtual. Em nenhuma das hipóteses, o cliente tem direito a uma “amostra grátis” do prato. Por essa razão, o art. 49 do CDC deve ser flexibilizado para essas hipóteses de compra de produto de consumo imediato.
É claro que, se o Yakisoba estivesse estragado ou com alguma contaminação de parasitas, aí o consumidor teria direito à devolução do seu dinheiro com direito ainda a indenização, pois aí haveria uma situação de responsabilidade por vício do produto (art. 12 do CDC). Não se falaria, pois, de direito de arrependimento do art. 49 do CDC.
Mais um exemplo de afastamento do art. 49 do CDC é o de compra de produtos ou serviços a distância com inequívoco conhecimento, pelo consumidor, de todas as qualidades, e sem diferença prática alguma em relação à compra feita presencialmente. É o que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) decidiu ao negar o direito de arrependimento do art. 49 do CDC a uma consumidora que havia adquirido um serviço fotográficos de álbum de formatura, conforme se vê neste julgado:

PROCESSO CIVIL. DIREITO DO CONSUMIDOR. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO MONITÓRIA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS FOTOGRÁFICOS. ÁLBUM DE FORMATURA. VENDA EM DOMICÍLIO. DIREITO DE ARREPENDIMENTO. ART. 49 DO CDC. INAPLICABILIDADE. TERMO INICIAL DOS JUROS MORATÓRIOS. VENCIMENTO DA OBRIGAÇÃO INADIMPLIDA. MORA EX RE. SENTENÇA MANTIDA. 1. O direito de arrependimento assegurado pelo artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor não pode ser interpretado isoladamente, mostrando-se necessário o cotejo com as demais normas do regramento jurídico. 2. O inequívoco conhecimento do tipo, quantidade e qualidade dos produtos adquiridos e a disponibilização do material em dispositivo digital (pen drive), que facilita sua reprodução, obstam o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor, ante as peculiaridades do caso concreto. 3. Nas ações monitórias baseadas em contrato de prestação de serviços, em que a obrigação é positiva, líquida e com termo certo de vencimento, os juros de mora incidem a partir do vencimento de cada parcela inadimplida, nos termos do art. 397 do Código Civil (mora ex re). 4. Apelação conhecida, mas não provida. Unânime.
(TJDFT, Processo nº 07149157720198070001 - (0714915-77.2019.8.07.0001 - Res. 65 CNJ), 3ª Turma Cível, Rel. Desembargadora Fátima Rafael, DJe 20/03/2020).
Há, ainda, casos mais complexos, como os envolvendo contratação de transporte aéreo pela internet. Qual é a diferença prática entre comprar a passagem aérea em uma loja (presencial) ou pelo site da companhia aérea (a distância)? É verdade que, em ambos os casos, por óbvio, o consumidor não tem direito a uma “amostra prévia” do voo, mas, no caso de compra pela internet, o consumidor não tem o auxílio técnico de um representante da companhia aérea e, assim, pode cometer algum erro no momento da aquisição do serviço de transporte aéreo (ex.: digitar errado a data de partida). Por isso, nesses casos, entendemos que é razoável que o art. 49 do CDC seja interpretado restritivamente para reduzir o prazo de reflexão de 24 horas, o que seria um tempo razoável para o consumidor reanalisar a sua compra.
O tema, porém, é ainda controverso na doutrina e na jurisprudência, a depender do caso concreto. Há, por exemplo, precedentes do TJDFT no sentido de que, no caso de “reserva de hotel” pela internet, o consumidor tem direito a exercer o direito de arrependimento em 7 dias, conforme se vê neste julgado:
APELAÇÃO CÍVEL. CONSUMIDOR. PRELIMINARES. VIA INADEQUADA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. REJEIÇÃO. INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS. MATÉRIA QUE SE CONFUNDE COM O MÉRITO. RESERVA DE HOTEL. INTERNET. DIREITO DE ARREPENDIMENTO. ART. 49 DO CDC. TEMPESTIVIDADE. COBRANÇA INDEVIDA. CARTÃO DE CRÉDITO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. DIREITO À RESTITUIÇÃO. 1. O mero erro material na nomenclatura atribuída ao recurso interposto no prazo legal não inviabiliza, por si só, o conhecimento da apelação, em observância princípios da instrumentalidade das formas, economia processual e primazia do julgamento do mérito. 2. É assegurado o direito de arrependimento nos termos do art. 49 do CDC quando manifestado no prazo de 7 dias a contar da assinatura do contrato ou do ato do recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial. 3. Exercitado o direito de arrependimento na forma legal, o consumidor tem direito à restituição imediata dos valores pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, sem prejuízo da correção monetária. 4. Cancelada a contratação de diárias de hotel em razão do exercício de direito potestativo do consumidor, é indevida a cobrança lançada na fatura do cartão de crédito, por constituir enriquecimento sem causa. Logo, fica configurada a responsabilidade solidária das administradoras de cartão de crédito, bancos e instituições financeiras, que têm notório interesse jurídico e comercial na venda. 5. Preliminares rejeitadas. Recurso conhecido e desprovido.
(TJDFT, Processo nº 07401744520178070001 - (0740174-45.2017.8.07.0001 - Res. 65 CNJ), 8ª Turma Cível, Rel. Des. Diaulas Costa Ribeiro, DJe 26/11/2018)
RAZÃO DE SER DO ART. 8º DA LEI DO RJET
Em meio às controvérsias interpretativas da real extensão do direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC, o legislador decidiu positivar uma interpretação no art. 8º da Lei do RJET, ao menos até 30 de outubro de 2020, data escolhida pelo legislador como o de provável fim dos transtornos da pandemia da Covid-19 no Brasil.
Não se ignora que, com o fechamento de estabelecimentos e a reclusão das pessoas ao seu domicílio por força de medidas de isolamento social e de quarentena destinadas a evitar a proliferação do vírus, houve aumento exponencial das vendas em regime de “delivery”.
Com o objetivo de dar segurança jurídica aos fornecedores, o art. 8º do RJET positivou uma interpretação extensiva do art. 49 do CDC especificamente para dois tipos de produtos essenciais: (1) os bens perecíveis ou de consumo imediato, como os casos de pedidos de pratos de comida por “delivery”; e (2) os de medicamentos.
Já tratamos da primeira hipótese.
Quanto à segunda, é fato que os medicamentos possuem qualidade notoriamente conhecida e não há nenhuma diferença prática se a compra desses produtos se deu presencialmente ou a distância.
Em síntese, até 30 de outubro de 2020, fica suspenso o direito potestativo conferido ao consumidor, previsto no art. 49 do CDC, no sentido de rejeitar imotivadamente a compra na hipótese de entrega domiciliar (“delivery”) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e medicamentos.
É importante que fique claro que, após 30 de outubro de 2020, a doutrina e a jurisprudência estarão livres para seguir nos debates acerca da adequada interpretação do art. 49 do CDC, de modo que poderão, até mesmo, optar por uma interpretação diversa da escolhida pelo art. 8º da Lei do RJET. Seja como for, a ideia do legislador é dar segurança jurídica, ao menos, no período excepcional da pandemia.
4.3. Contrato de Locação de Imóveis Urbanos (art. 9º - vetado)
Art. 9º - Dispositivo vetado. Os coautores, em breve, pretendem publicar artigo com reflexões críticas acerca desse veto.
5. Impacto no Direito das Coisas
5.1. Usucapião (art. 10)
Art. 10. Suspendem-se os prazos de aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, a partir da vigência desta Lei até 30 de outubro de 2020.
EXTENSÃO DOS COMENTÁRIOS FEITOS AO ART. 3º PARA O USUCAPIÃO
Antes do Código Civil de 1916, o usucapião era tratado como uma prescrição aquisitiva. Apesar de haver controvérsia acerca da natureza do usucapião como uma prescrição aquisitiva, é fato que o próprio legislador, no art. 1.244 do Código Civil, estendeu as regras de paralisação e de interrupção do prazo prescricional para o usucapião.
Desse modo, tudo quanto expusemos ao comentarmos o art. 3º da Lei do RJET – que trata de paralisação do prazo prescricional – também se estende ao artigo sob exame, que cuida da paralisação dos prazos de usucapião.
E não poderia ser diferente. O fundamento dos arts. 3º e 10 é o mesmo: não se deve fluir contra quem não pode agir ("contra non valentem agere non currit praescriptio").
Desse modo, entre a data de vigência da Lei do RJET e 30 de outubro de 2020, fica congelada a fluência tanto dos prazos de prescrição e de decadência quanto dos de usucapião.
Isso significa, por exemplo, que, se o sujeito exercia posse mansa e contínua, com justo título e boa-fé (usucapião ordinária - ar. 1.242, CC), há 8 anos, tendo em vista a superveniência da pandemia, o prazo de prescrição aquisitiva ficará suspenso, dentro da “janela” da vigência da nova Lei até 30 de outubro de 2020. Com o advento do termo final, o prazo voltará a correr, devendo ser computado o lapso já transcorrido.
Como isso, o proprietário contra o qual corre o prazo estará favorecido, em virtude da paralisação do decurso prazal do possuidor/prescribente.
Em nosso sentir, o legislador deveria ter previsto essa hipótese de suspensão para a aquisição, por usucapião, de todo e qualquer direito real, uma vez que outros direitos podem ser adquiridos por usucapião, a exemplo da servidão, da laje e do direito de superfície.
Além do mais, à semelhança dos comentários que fizemos ao art. 3º da Lei do RJET, deve-se emprestar interpretação restritiva ao art. 10 para não beneficiar proprietários negligentes, assim entendidos aqueles que iriam se manter inertes mesmo se não tivesse havido pandemia alguma.
Por fim, assim como expusemos nos comentários ao art. 3º da Lei do RJET, para período anterior à entrada em vigor dessa lei emergencial, é cabível sustentar a paralisação do prazo de usucapião com base no princípio do "contra non valentem agere non currit praescriptio" desde 3 de fevereiro de 2020 (data da Portaria GM/MS nº 188/2020), ou, em situação extremamente excepcional de comprovada impossibilidade de reivindicar seus direitos no caso concreto, desde uma data anterior.
5.2. Condomínio edilício (arts. 11 – vetado –, 12 e 13)
Art. 11. - Dispositivo vetado. Os coautores, em breve, pretendem publicar artigo com reflexões críticas acerca desse veto.
Art. 12. A assembleia condominial, inclusive para os fins dos arts. 1.349 e 1.350 do Código Civil, e a respectiva votação poderão ocorrer, em caráter emergencial, até 30 de outubro de 2020, por meios virtuais, caso em que a manifestação de vontade de cada condômino por esse meio será equiparada, para todos os efeitos jurídicos, à sua assinatura presencial.
Parágrafo único. Não sendo possível a realização de assembleia condominial na forma prevista no caput, os mandatos de síndico vencidos a partir de 20 de março de 2020 ficam prorrogados até 30 de outubro de 2020.
ASSEMBLEIA VIRTUAL: EXTENSÃO DOS COMENTÁRIOS FEITOS PARA AS ASSEMBLEIAS DE PESSOAS JURÍDICAS
Tudo quanto expusemos ao comentarmos o art. 4º da Lei da RJET deve ser estendido, "mutatis mutandi", para o art. 12, pois o fundamento de ambos os dispositivos é o mesmo: autorizar conclaves virtuais em razão da inadequação de aglomeração de pessoas nesses tempos de crise viral.
Assim, o síndico deverá, unilateralmente, escolher um meio de virtual para a realização das assembleias e para a coleta dos votos, admitido, porém, que a assembleia determine mudanças nesses procedimentos. Reportamo-nos o leitor ao que expusemos nos comentários ao art. 4º da Lei do RJET.
PRORROGAÇÃO DO MANDATO DOS SÍNDICOS
Os síndicos, salvo disposição contrária na convenção, têm mandato de 2 anos, renováveis por igual período (art. 1.347, CC).
Expirado o prazo do mandato sem que nova assembleia seja feita para nomeação de outro síndico ou para a recondução do atual, a doutrina majoritária admite que haja uma prorrogação tácita. Entretanto, na prática, isso se torna pouco operacional, pois, por exemplo, as instituições financeiras costumam bloquear o acesso do síndico à conta bancária do condomínio após o fim do prazo do mandato.
Nesse período de coronavírus, o síndico deverá convocar assembleia virtual para deliberar sobre a nomeação de novo síndico se o prazo do seu mandato estiver para expirar. Caso tal não seja viável, o art. 12, parágrafo único, da Lei do RJET admite a prorrogação automática do mandato para 30 de outubro de 2020. Entendemos que, para efeito de comprovação perante terceiros (como os bancos), basta declaração do síndico de que não foi viável realizar a assembleia virtual antes da expiração do prazo do mandato.
Art. 13. É obrigatória, sob pena de destituição do síndico, a prestação de contas regular de seus atos de administração.
PENA DE DESTITUIÇÃO DO SÍNDICO
O art. 13 da Lei do RJET incorreu em redundância, talvez pelo receio de abusos que possam ser cometidos por síndicos em virtude da excepcionalidade do período pandêmico.
Já é dever do síndico prestar à assembleia contas regularmente de seus atos de modo anual e sempre que for exigido (art. 1.348, VIII).
Se não for viável a realização da assembleia, nem mesmo a virtual, o síndico deverá, logo que possível, convocar a assembleia para prestar contas.
A punição pela falta da prestação de contas é a sua destituição, seja por força do art. 13 da Lei do RJET, seja porque o art. 1.349 do CC já previa essa destituição.
O art. 13 da lei emergencial veicula uma redundância enfática. 
6. Impacto no Direito de Família e das Sucessões
No âmbito procedimental do Direito de Família e das Sucessões, a Lei do RJET fez dois destaques: na prisão civil e no aspecto atinente ao prazo de inventário e de partilha.
6.1. Prisão Civil do Devedor de Alimentos (art. 15)
Art. 15. Até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações.
O descumprimento voluntário e inescusável da obrigação legal de pagamento de alimentos enseja a prisão civil do devedor.
Trata-se da única forma de prisão civil admitida em nosso sistema (art. 5º, LXVII, CF) e de grande utilidade prática e social.
Registre-se, de plano, que somente o descumprimento dessa modalidade de alimentos autoriza a medida extrema, não sendo aplicável a alimentos voluntários ou indenizatórios (derivados do Direito Obrigacional).
Nesse contexto, vale lembrar, antes mesmo do CPC-15, o enunciado 309 da Súmula do STJ, no sentido de que “o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo”.
E, de acordo com o § 3º do art. 528 do CPC-15, se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.
Ora, conforme a nova norma da Lei do RJET, enquanto vigente o regime jurídico emergencial, o cumprimento da prisão civil dar-se-á exclusivamente por meio da custódia domiciliar.
Trata-se de previsão que vai ao encontro de entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, por meio de decisão da lavra do eminente Min. Paulo de Tarso Sanseverino que, a pedido da Defensoria Pública da União, estendeu, em habeas corpus (HC 568.021), a todos os presos por dívida alimentar do País, os efeitos de liminar até então com eficácia restrita apenas ao Estado do Ceará .
Em nosso sentir, a previsão legal justifica-se, diante do perigo de contágio da grave doença viral, na perspectiva do princípio maior da dignidade da pessoa humana, sem que haja prejuízo à exigibilidade da obrigação inadimplida.
6.2. Prazo para a instauração de Processo de Inventário e Partilha (art. 16)
Art. 16. O prazo do art. 611 do Código de Processo Civil para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020.
Parágrafo único. O prazo de 12 meses do art. 611 do Código de Processo Civil, para que seja ultimado o processo de inventário e de partilha, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da vigência desta Lei até 30 de outubro de 2020.
Para a adequada compreensão do dispositivo, é necessário passarmos em revista o art. 611 do CPC:
Art. 611. O processo de inventário e de partilha deve ser instaurado dentro de 2 (dois) meses, a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subsequentes, podendo o juiz prorrogar esses prazos, de ofício ou a requerimento de parte.
Por abertura da sucessão entenda-se a morte do autor da herança.
Nesse diapasão, caso a morte haja ocorrido a partir de 1º de fevereiro de 2020, o termo inicial do prazo de dois meses previsto no referido art. 611 será postergado para 30 de outubro de 2020.
E a norma vai além, ao estabelecer que o prazo de 12 meses para se ultimar o inventário, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da vigência da Lei que instituiu o Regime Emergencial até 30 de outubro de 2020.
Exemplo: a abertura do inventário foi requerida em 20 de novembro de 2019.
Segundo a redação do CPC, o prazo ultimar-se-ia em 20 de novembro de 2020. Com o advento da Lei do RJET, opera-se a suspensão do curso do prazo, que somente voltará a correr após 30 de outubro de 2020, abatendo-se o período já decorrido.
Tal previsão se justifica pela provável dificuldade, diante do cenário turbulento causado pela pandemia, para o levantamento de dados, reunião de documentos e formalização do pedido judicial, mormente levando em consideração a elevada quantidade de informações que deve ser fornecida por ocasião da prestação das primeiras declarações ou para realização do inventário pela via extrajudicial.

--

Por Pablo Stolze Gagliano, juiz de Direito, e Carlos E. Elias de Oliveira, advogado.

Fonte do artigo: STOLZE, Pablo; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei da Pandemia (Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET). Análise detalhada das questões de Direito Civil e Direito Processual Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6190, 12 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46412. Acesso em: 12 jun. 2020.   

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dívidas contraídas no casamento devem ser partilhadas na separação

Extraído de:   Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul    - 23 horas atrás Compartilhe O Tribunal de Justiça do Estado negou pedido de pensão alimentícia a ex-mulher e determinou assim como a partilha de dívidas do ex-casal, confirmando sentença proferida na Comarca de Marau. O Juízo do 1º Grau concedeu o pedido. A decisão foi confirmada pelo TJRS. Caso O autor do processo ingressou na Justiça com ação de separação, partilha e alimentos contra a ex-mulher. O casal já estava separado há dois anos. No pedido, o ex-marido apresentou as dívidas a serem partilhadas, sendo elas um débito no valor de cerca de R$ 4 mil, decorrente de um financiamento para custear um piano dado de presente à filha do casal, bem como a mensalidade da faculdade da jovem, no valor de R$ 346,00. Sentença O processo tramitou na Comarca de Marau. O julgamento foi realizado pela Juíza de Direito Margot Cristina Agostini, da 1ª Vara Judicial do Foro de Marau. Na sentença, a magistrada concede...

OPINIÃO Improbidade: principais jurisprudências e temas afetados pela Lei 14.230/2021

  29 de janeiro de 2022, 17h19 Por  Daniel Santos de Freitas Sem dúvidas que, com o advento da Lei 14.230/2021, que altera substancialmente a Lei 8.429/92, uma missão muito importante foi dada ao Poder Judiciário, em especial ao STJ: pacificar entraves interpretativos acerca da Lei de Improbidade (Lei 8.429/92), sob a perspectiva da lei modificadora. Pela profundidade das alterações, em que pese não ter sido revogada a Lei 8.429/92, muitos afirmam estarmos diante de uma "nova" Lei de Improbidade Administrativa. Em certos aspectos, parece que o legislador enfrentou alguns posicionamentos da corte superior que não mais se adequavam à realidade atual e editou normas em sentido oposto, de sorte a dar um ar totalmente atualizado à Lei de Improbidade, visando principalmente a conter excessos.

Legalidade, discricionariedade, proporcionalidade: o controle judicial dos atos administrativos na visão do STJ

  ESPECIAL 13/03/2022 06:55 O ato administrativo – espécie de ato jurídico – é toda manifestação unilateral de vontade da administração pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato resguardar, adquirir, modificar, extinguir ou declarar direitos, ou, ainda, impor obrigações aos administrados ou a si própria. Esse é um dos temas mais estudados no âmbito do direito administrativo e, da mesma forma, um dos mais frequentes nas ações ajuizadas contra a administração pública. Em razão do poder discricionário da administração, nem todas as questões relativas ao ato administrativo podem ser analisadas pelo Judiciário – que, em geral, está adstrito à análise dos requisitos legais de validade, mas também deve aferir o respeito aos princípios administrativos, como os da razoabilidade e da proporcionalidade. Cotidianamente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) é acionado para estabelecer a correta interpretação jurídica nos conflitos que envolvem esse tema. Ato que el...