Até onde o Estado pode intervir na autonomia do paciente?
GIOVANNA
TRAD CAVALCANTI, Advogada militante na Área do Direito Médico-Hospitalar e da Saúde, Pós-
graduada em Direito Processual Civil pela Unissul, Pós- graduanda em Direito
Médico pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (UNIAASELVI), Membro da
Comissão de Direito à Saúde da OAB/MS e Membro da World Association for Medical
Law. Presidente da comissão de Biodireito da OAB/MS e membro da Comissão de
Direito Médico e da Saúde da OAB Nacional.
21/04/2014 06h00
O resguardo da saúde e da vida, muitas vezes, esgrime na restrição de
outros bens jurídicos de transcendental valia. Recentemente, os noticiários
trouxeram à mesa da sociedade a história emblemática de uma gestante que teve
frustrado o seu desejo de dar à luz seu filho pela via natural. Vontade esta
interceptada por uma ordem judicial que a ordenou a se submeter ao parto
cesariano. Por óbvio, o caso causou perplexidade e alvoroço social. Sobraram análises
críticas das mais variadas perspectivas sobre a valoração dos direitos
fundamentais colocados em pauta: autonomia do indivíduo versus direito à vida.
Deste contexto, sobressaíram vários protagonistas (médicos, parturiente, promotoria e magistratura), com holofotes voltados ao julgamento de seus comportamentos. Quem agiu certo ou errado?. À resposta a este enigma será colocada no colo do direito e é com fulcro nele -direito- que esmiuçarei a licitude ou não da conduta de cada personalidade envolvida.
A decisão da médica em se recusar a empreender o parto normal, e a sua iniciativa em comunicar os fatos ao MP, no meu sentir, foram irrepreensíveis. Atendeu aos mandamentos éticos que regulam exercício de sua atividade profissional; obedeceu a ordem jurídica e exerceu o seu dever de cidadã de bem. Isso porque- em conformidade com o seu Código de Ética- o médico não pode renunciar à sua liberdade profissional. A legalidade de sua conduta ainda emana do fato de ter comunicado o acontecimento ao M.P, já que havia interesse de incapaz.
Portanto, temos que a médica não agrediu a autodeterminação da paciente quando se negou a executar o parto normal, pois buscou preservar o bem que antecede a qualquer outro, a vida. Não olvido que a paciente tem o direito de escolher a forma de parto que atenda melhor os seus anseios, porém, o médico não está obrigado a empreender procedimento temerário e contrário ao seu ideal.
À vista disso, o direito à autonomia da gestante definhou frente à ameaça de perecimento do bem da vida.
Registra-se que, não sabemos ao certo como foi o diálogo entre a gestante e a equipe médica. Mas temos ciência de que uma saudável relação (pautada na comunicação e informação sobre as opções terapêuticas disponíveis, riscos, benefícios, etc.), em tese, amadurece o poder de deliberação do paciente. Assim, admitamos que os pais não receberam assistência informacional ajustada. E, se assim se sucedeu, arrisco a afirmar que esta falha teria sido a mola propulsora deste lamentável episódio.
De banda outra, evidenciou-se desumana a maneira em que foi instrumentalizada a situação, tendo o Ministério Público e o Judiciário excedido em seus respectivos papéis.
O fim almejado pelo Ministério Público convergiu com as regras do direito, vez que sopesou a tutela da vida de um nascituro. Contudo, apesar da nobreza de seu ato, não teve preocupação e sensibilidade para preservar a dignidade da parturiente, deixando de apontar alternativas e formas mais humanas que a conduziriam a tomar uma decisão legítima.
O Estado-Juiz também pecou sobremaneira. Agiu de modo desarrazoado na forma em que determinou o cumprimento da liminar, com direito a uma produção cinematográfica que, certamente, intimidou à gestante. Isso atesta que desestimou os sentimentos daquela mulher prestes à dar a luz, cujo momento, como é cediço, exige compaixão e paciência.
E a legalização da ordem judicial calcada na prevalência do direito à vida sobre a autonomia dependia de um simples ato de brandura do estado, no sentido de empregar condições que minimizassem o sofrimento e o processo de escolha da gestante. Uma psicóloga, uma assistente social, enfim, até o juiz, poderiam intervir com o objetivo de transmitir-lhe segurança e compreensão.
Portanto, não enxergo o grupo médico ou a gestante como algozes deste cenário. O Estado sim contribuiu para que o episódio tomasse proporções tão exacerbadas, incitando desequilíbrio entre bens jurídicos preciosos, o que corrobora sua indiferença com a educação de seus agentes públicos ao atendimento das demandas que exigem um toque de humanidade e bom-senso.
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