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Três argumentos para manter o foro por prerrogativa de função

OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL

4 de março de 2017, 8h05
I.
O foro por prerrogativa está sob ameaça. Na mesma semana em que a imprensa deu amplo destaque à decisão do ministro Celso de Mello que autorizou a posse de Moreira Franco no cargo de ministro da Secretaria-Geral da Presidência — os autores da ação argumentavam que a nomeação teria como único escopo a concessão de foro por prerrogativa de função —[1], o ministro Luís Roberto Barroso anunciou a inclusão em pauta de processo em que pretende rediscutir os contornos constitucionais de tal instituto[2]. Tais episódios fomentaram uma nova rodada de debates no Congresso Nacional acerca da extinção do foro privilegiado após o Carnaval[3].
O ponto de vista atualmente disseminado é o de que o foro por prerrogativa de função seria um estímulo à impunidade, já que as ações em primeiro grau andariam de maneira muito mais rápida e efetiva, independentemente do status do investigado. Não há dúvida de que há boas razões pragmáticas para a extinção do foro por prerrogativa, notadamente ligadas à celeridade da instrução processual. Na contramão da opinião pública, o presente artigo tem como escopo trazer três argumentos normativos — baseados na razão de ser da prerrogativa de foro — pouco explorados pela literatura especializada e que carecem de uma maior reflexão.
II.

A. Unificação do foro. Uma das principais queixas relacionadas ao foro por prerrogativa de função é a de que ele feriria o princípio da isonomia, na medida em que criaria um privilégio odioso a determinadas pessoas, que, diferentemente das demais, respondem suas ações em um tribunal menos propenso a condená-los.
A doutrina pátria, por sua vez, destaca que o foro por prerrogativa de função não fere a igualdade, visto não se tratar de privilégio, mas de garantia inerente ao exercício de determinados cargos, que, por sua relevância, exigem tratamento diferenciado. O argumento normalmente se desenvolve em dois sentidos. Se, por um lado, o exercício de determinadas funções de elevado significado político — que, muitas vezes, exige a tomada de decisões impopulares — demanda que as ações propostas contra seus ocupantes sejam julgadas em colegiados compostos de juízes mais experientes, de cortes superiores; por outro lado, lideranças políticas locais teriam maior facilidade para exercer pressão sobre magistrados de 1º grau de sua região do que sobre juízes de instâncias superiores — desvinculados da realidade política regional — o que justificaria o deslocamento de foro[4].
Ambas as perspectivas parecem corretas, mas há uma terceira linha argumentativa que merece, ao menos, o mesmo destaque. A exposição inerente a determinados cargos faz com que seus ocupantes fiquem mais suscetíveis a responder a ações judiciais movidas por paixões de toda ordem. Apenas para citar como exemplo, à época das privatizações do governo FHC, foram propostas várias medidas judiciais contra os membros da cúpula do governo, notadamente contra o advogado-geral da União, que, apesar de estar incumbido de dar contorno jurídico à política pública em questão, não possuía foro por prerrogativa de função. Em pouco tempo, inúmeras ações foram ajuizadas em várias comarcas brasileiras contra o AGU, o que, então, levou o presidente da República a editar, em 2001, uma medida provisória elevando o referido cargo à condição de ministro de Estado.
Percebe-se, pois, que a principal vantagem adquirida com a extensão do foro por prerrogativa ao AGU foi a unificação do foro para julgamento das diversas ações ajuizadas, que passaram a ser de competência do STF. Tal medida apresentou-se essencial para dar tranquilidade ao ocupante do cargo que, caso contrário, teria que passar mais tempo com a contratação de advogados e elaborando sua defesa do que efetivamente se dedicando às importantes tarefas de sua função pública. Sem tal garantia, dificilmente pessoas gabaritadas aceitariam o convite para assumir o cargo de AGU.
Por razões similares, o presidente Lula concedeu, em 2004, status de ministro de Estado ao cargo de presidente do Banco Central, blindando-o de inúmeras ações temerárias que poderiam ser propostas em todo o Brasil por aqueles contrários às medidas econômicas por ele adotadas[5]. A unificação do foro, pois, parece ser um fator decisivo para dar autonomia e independência a determinados cargos do alto escalão da administração pública.
B. Foro privilegiado seria uma jabuticaba? Disseminou-se na imprensa nacional a ideia de que o foro por prerrogativa brasileiro seria um caso excepcional no Direito Comparado, já que em nenhum outro país haveria tantas autoridades com tal prerrogativa. O procurador da República responsável pelas investigações da "lava jato" chegou a afirmar que há mais de 22 mil autoridades com foro por prerrogativa no Brasil, o que nos afastaria de qualquer padrão internacional de moralidade política[6].
Tais dados precisam ser compreendidos dentro do contexto. Como se sabe, há mais de 10 mil juízes no Brasil — que possuem prerrogativa de foro —, sem contar os milhares de membros do Ministério Público, que compõem outra grande parcela desse grupo. Na verdade, o número de políticos relevantes com foro por prerrogativa parece ser relativamente pequeno: são 513 deputados, 81 senadores e 28 ministros de Estado. Em verdade, o que assombra é a quantidade dessas autoridades investigadas no bojo da operação "lava jato", e não a existência em si do foro por prerrogativa de função.
A maioria das matérias jornalísticas que alarmam a excepcionalidade brasileira[7] baseia-se em estudo que pesquisou unicamente nos textos constitucionais de vários países institutos similares ao foro por prerrogativa brasileiro, sem fazer uma análise crítica sobre a existência de mecanismos que blindam políticos de serem investigados[8]. Ocorre que em vários países que teoricamente não possuem foro prerrogativa há mecanismos que, na prática, inviabilizam a persecução penal de parlamentares. Com efeito, em países como Portugal, Espanha e Itália, as Constituições condicionam a investigação de políticos à autorização de sua casa parlamentar[9].
Ou seja, diferentemente do que ocorre no Brasil, em que os parlamentares são naturalmente investigados e processados perante o STF, em países tidos como exemplo pela imprensa ainda se exige uma autorização quase que inexequível para a instauração de processo-crime contra políticos. Nesse quesito, o modelo brasileiro, em que tal autorização foi abolida pela Emenda Constitucional 35, de 20 de dezembro de 2001, parece ser mais civilizado e democrático.
C. Julgamento por órgão colegiado. À época da promulgação da Constituição Federal de 1988, ninguém imaginava que tantos políticos com foro privilegiado seriam alvo de investigações criminais. O aumento vertiginoso de processos criminais no STF fez com que críticos rapidamente levantassem a tese de que a instrução criminal não poderia ser feita por órgãos colegiados, pois os tribunais não possuiriam estrutura adequada para lidar com questões desse tipo. A demora do STF no recebimento de denúncias na operação "lava jato" tem elevado o tom das críticas, quando comparado com as inúmeras condenações já proferidas em 1º grau[10].
Ao contrário do que possa parecer , contudo, o julgamento proferido diretamente pelo STF traz uma série de benefícios institucionais que merecem ser levados em consideração nesse debate. Em primeiro lugar, o julgamento por órgão colegiado afasta o argumento de que a condenação baseou-se em perseguição política por esse ou por aquele magistrado. Em se tratando de casos envolvendo parlamentares com grandes ambições políticas, não há dúvida de que uma condenação pelo STF pode interromper definitivamente sua carreira, já que votos de reconhecidos magistrados, com distintas visões de mundo, aumentam o grau de segurança jurídica e o sentimento de imparcialidade em tal condenação.
Em segundo lugar, da decisão proferida pelo STF não cabe nenhum recurso, de maneira que, uma vez condenado, o político já passa a cumprir a pena imediatamente, como ocorreu no caso do mensalão. Essa efetividade da decisão diminui a sensação de impunidade. Nesse quesito, é importante destacar que as sentenças proferidas em 1º grau de jurisdição estão sujeitas a inúmeros recursos, que muitas vezes se quedam represados nos tribunais de 2º grau, sem que o público tenha notícia de seu andamento. Assim, a comparação entre a celeridade da 1ª instância com a lentidão do STF não parece justa, pois desconsidera o tempo de julgamento das apelações e dos demais recursos.
Em terceiro lugar, enquanto a condenação proferida por juízos monocráticos não impedem a candidatura de políticos, a Lei da Ficha Limpa preceitua, no artigo 1º, inciso I, alínea “e”, que aqueles condenados por órgão colegiado tornam-se inelegíveis por oito anos após o cumprimento da pena. Ou seja, eventual decisão proferida pelo STF tem o condão de imediatamente banir o político da vida pública por quase uma década.
Todos esses aspectos nos remetem ao verdadeiro problema relacionado à prerrogativa de foro, que é o da gestão dos processos pelo STF. Com efeito, nossa corte suprema sofre, há muito, com o excesso de processos de toda ordem. Basta verificar a quantidade represada de recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida[11]. Não obstante isso, várias medidas foram tomadas nos últimos anos para acelerar o julgamento dos processos contra autoridades com foro por prerrogativa, como, por exemplo, a criação da figura do juiz-instrutor para assessorar os ministros do STF[12] e a transferência da competência para julgamento das ações penais do Plenário para as turmas[13].
Um pouco de imaginação institucional poderia ajudar a desatar os nós da prerrogativa de foro, como a criação de um órgão no próprio STF, composto de magistrados com vasta experiência em matéria penal, para, sob a supervisão dos relatores, instruírem os inquéritos e as ações penais. Outra medida que poderia ser adotada seria a divisão dos ministros em três turmas de três ministros, como de ordinário já ocorre nos tribunais de Justiça, o que aumentaria a força de trabalho da corte. Enfim, os problemas sobre a morosidade do Poder Judiciário já são amplamente conhecidos e demandam soluções criativas, mas condizentes com o texto constitucional.
III.
O debate acerca do foro por prerrogativa de função deve se pautar em argumentos de princípio que justifiquem (ou não) a sua existência. Parece-me equivocado, a priori, igualar o tratamento dos políticos e administradores públicos — que se encontram mais expostos a ações de toda ordem — ao dos demais cidadãos com base exclusivamente na suposta morosidade do STF. Tal medida seria tapar o sol com a peneira, já que é fato notório que todas as instâncias brasileiras se encontram congestionadas.
Para elevar o debate sobre a extinção da prerrogativa de foro, é necessário escapar de argumentos consequencialistas e circunstanciais e passar a analisar a questão sob o prisma da moralidade política, ou seja, de como as instituições devem ser estruturadas em uma sociedade bem ordenada. Esse parece ser o verdadeiro desafio para o Congresso Nacional.

[1] http://www.conjur.com.br/2017-fev-14/celso-mello-mantem-moreira-franco-secretaria-geral-presidencia.
[2] http://www.conjur.com.br/2017-fev-16/barroso-stf-limitar-foro-especial-antes-qualquer-pec.
[3] http://g1.globo.com/politica/noticia/debate-sobre-foro-privilegiado-deve-ganhar-forca-apos-o-carnaval-veja-propostas.ghtml.
[4] Os doutrinadores costumam se ancorar em célebre passagem do voto prolatado por Victor Nunes Leal sobre o tema, que merece ser transcrita: “A jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente, instituída, não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja a eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado” (Recl. 473, rel. min. Victor Nunes, j. 31/1/1962, DJ 6/6/1962).
[5] http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,presidente-do-banco-central-ganha-status-de-ministro,20040816p37488.
[6] http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/22-mil-pessoas-tem-foro-privilegiado-no-brasil-aponta-lava-jato/.
[7] Confira, como exemplo, a seguinte reportagem: http://oglobo.globo.com/brasil/foro-privilegiado-no-brasil-mais-amplo-comparado-outros-20-paises-20973826.
[8] O estudo está disponível em http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/estnottec/areas-da-conle/tema6/2015_21981_foro-por-prerrogativa-de-funcao-no-direito-comparado_newton-tavares.
[9] Nesse sentido, confira o artigo 157, inciso 4, da Constituição de Portugal; o artigo 71, inciso 2, da Constituição da Espanha; e o artigo 68 da Constituição da Itália.
[10] A título exemplificativo, confira o editorial do Estadão de 7 de fevereiro de 2017, em http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-tempo-da-lava-jato-no-stf,70001649722.
[11] Confira as reflexões de Luís Roberto Barroso sobre o tema em http://www.conjur.com.br/2014-ago-26/roberto-barroso-propoe-limitar-repercussao-geral-supremo.
[12] Essa permissão foi dada pela Lei 12.019, de 21 de junho de 2009.
[13] A transferência de competência deu-se em 2014 por emenda regimental. Sobre o tema, veja a seguinte notícia: http://www.conjur.com.br/2014-mai-28/supremo-transfere-parte-competencia-penal-turmas

http://www.conjur.com.br/2017-mar-04/observatorio-constitucional-tres-argumentos-manter-foro-prerrogativa-funcao

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