“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

DIREITO CIVIL ATUAL Função social dos contratos, lei da liberdade econômica e o coronavírus ​​​​​​​

1. Tratar sobre função social dos contratos após a vigência da Lei da Liberdade Econômica (LLE) assumiu um sentido especial nos últimos dias por causa da pandemia do coronavírus, cujos efeitos sociais e econômicos estão sendo devastadores em nossa realidade.
O enfrentamento inicia-se pela Medida Provisória 881/2019 (MP). A exposição de motivos da MP demonstra que o objetivo visado foi alterar as premissas postas no Código Civil de 2003 (CC), assim como forte influência da análise econômica do Direito, além de uma tentativa explícita de incluir dispositivos com o caráter ideológico dominante na atual gestão de governo, tudo em prol da "eficiência econômica".[1]

Queria-se afastar o artido 421 do CC como fundamento para revisão ou intervenção heterônoma nos contratos. Em vez de "revogar" o artigo e correr o risco de que a "ideia" de funcionalização ou "o princípio da função social" pudesse ser aplicados independentemente de previsão legal, tentou-se restringir a possibilidade dos poderes no âmbito de uma relação contratual com fundamento na função social dos contratos.
Veja-se o texto da MP881/2019:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional.
A boa técnica nem sempre acompanha os propósitos políticos. A parte final do caput e a expressão "revisão contratual determinada de forma externa" revelam impropriedades jurídicas e de linguagem. Isso para não falar sobre o trecho que cria "limites aos poderes" da República, tal como se a norma tivesse status constitucional.[2]
2. O Congresso Nacional, dentro dos limites do trâmite de uma MP, demonstrou zelo maior e o presidente da Câmara dos Deputados acolheu sugestões oferecidas por Judith Martins-Costa, Otavio Luiz Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier Leonardo e Jorge Cesa Ferreira da Silva,[3]a partir das quais diversos aprimoramentos foram alcançados, sem possibilidade de reconstruir ou desenhar o dispositivo.
Como resultado final, retirou-se a expressão "em razão", que era a condicionante do caput e que expressava a ligação imanente entre liberdade de contratar e sua funcionalidade, bem como se inseriu um parágrafo único tratando do princípio da "intervenção mínima" e da "excepcionalidade da revisão contratual".
Com isso, o texto do CC passou a ser o seguinte:
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.” (NR)
Em síntese, a alteração legislativa pode ser dividida em três aspectos: (1) eliminação da expressão "em razão", que condicionava liberdade de contratar e função social dos contratos, (2) inserção do princípio da "intervenção mínima", e, (3) excepcionalidade da revisão contratual.
O objeto deste breve artigo é somente o terceiro item: a regra geral vinculada à função social dos contratos prevendo a possibilidade de revisão contratual em situações excepcionais, como a que estamos vivendo em um contexto com avanço do coronavírus.
3. Até o advento da LLE não havia norma geral prevendo revisão dos contratos, mesmo em situações excepcionais: a possibilidade de modificação dos efeitos dos contratos somente era admitida nas hipóteses dos artigos 157, parágrafo 2º, 317, 478 ou 479 do CC. Nenhum desses casos é propriamente uma hipótese de revisão geral dos contratos.
Outras disposições sobre empreitada (artigo 620 do  CC), locação (artigo 19 da Lei 8.245/1991), indicam hipóteses concretas e específicas, que não esgotam e certamente não responderão aos problemas que decorrerão da pandemia do Coronavírus em seus efeitos econômicos.
A norma de maior generalidade no sistema brasileiro é o dispositivo do Art. 317 do CC, que funciona como mecanismo de revisão da prestação nas hipóteses de alterações supervenientes das circunstâncias, quando uma prestação se torna excessivamente onerosa para uma das partes, o que consequentemente afeta o contrato e justifica sua revisão.[4]
Francisco Marino na obra mais recente do Direito brasileiro a respeito da revisão dos contratos, ainda na perspectiva anterior a LLE, afirmou peremptoriamente que “não há, em suma, um princípio geral da revisão dos contratos no Direito positivo brasileiro”[5]
4. Todavia a generalidade da nova norma[6] abre o questionamento sobre a possibilidade de revisão dos contratos em casos excepcionais ou quando atendidos os requisitos de alguma das teorias tais como “teoria da imprevisão”, “teoria da quebra da base objetiva” ou a “teoria da onerosidade excessiva”, tendo em vista que não há circunstância mais extraordinária e excepcional do que o surto de coronavírus.
Não bastasse a situação fática de isolamento social considerado como necessário para evitar a proliferação do vírus, há uma miríade de atos normativos federais, estaduais e municipais restringindo o comércio, a circulação, o transporte de pessoas, entre outras limitações, cujos efeitos sobre os contratos são evidentes.[7]
As situações vividas por conta da suspensão do transporte de pessoas ou fechamento temporário de shoppings centers certamente levará a necessária alteração dos ajustes contratuais, tendo em vista fatos extraordinários, muitos inevitáveis e também imprevisíveis.
A maior parte dos casos será ajustada entre as partes que cientes da gravidade da situação encontrarão alternativas adequadas e consensuais, sempre regida pela ética necessária aos contratos, segundo a boa-fé objetiva. Entretanto, haverá tantas outras que exigirão uma solução jurídica heterocompositiva para evento de magnitude como o que estamos passando.
5. O parágrafo único do artigo 421 não estabelece balizas ou critérios específicos sobre como promover a revisão do contrato a partir de sua função social em situações excepcionais, entretanto a dicção legal precisa ser lida e entendida no contexto do conjunto dos demais marcos normativos oferecidos pela Lei. Observe-se que tal disposição está em consonância com o disposto no art. 5º da LINB:
Art. 5º  Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
A lei, todavia, não contém de modo integral a solução para os problemas que decorrerão da suspensão das atividades: será necessário um ajuste complexo para alterar as condições contratuais ou soluções judiciais ou arbitrais que levem em conta uma necessária transformação nos efeitos dos contratos.
Nesse sentido, não há como afastar a interpretação do contrato e como devem as partes se comportar a teor da função social típica do contrato, além é claro, dos deveres decorrentes da boa-fé objetiva.
6. A inevitabilidade de que trata o artigo 393 do CC não regula por inteiro a matéria, pois simplesmente afasta a possibilidade que uma parte postule os prejuízos sofridos quando a outra não deu causa, já que o fato que impediu o adimplemento foi determinado por razões exteriores. Neste caso, há hipóteses de “isenção, mitigação e de exclusão de certos deveres”,[8] o que evidentemente é insuficiente para resolver a complexidade dos casos da vida nos quais o próprio regulamento contratual precisará ser alterado, especialmente nas relações de longa duração, de fornecimento de mercadorias e de prestação de determinados serviços continuados.
Diante desse quadro, a redação do parágrafo único do artigo 421, traz uma norma geral de revisão dos contratos, fornecendo o critério da “funcionalidade social do contrato” como parâmetro para que o julgador promova a intervenção quando necessário.
Como afirmado anteriormente, seu conteúdo é genérico, porém não pode ser considerado unicamente programático, tendo em vista que o sistema do código acolhe hipóteses de tangibilidade contratual, assim como a tradição do Direito Privado nunca descurou da possibilidade de revisão das condições contratuais em situações extremas, seja pela presença de cláusulas abusivas e do esforço de integração e interpretação do contrato, seja pela alteração superveniente das circunstâncias, que devem prover as linhas para a interpretação e consolidação dessa nova norma, especialmente  pertinente diante da grande crise na qual estamos submersos.
7. A questão do equilíbrio ou equivalências contratuais são regulados por normas específicas, como é o caso do artigo 478, artigo 479 e mesmo em disposições especiais como as do artigo 620 do CC, ou artigo 19 da Lei 8.245/91, porém as hipóteses de suspensão e alteração dos efeitos dos contratos relativamente aos custos dessa suspensão, modo de distribuição dos riscos, entre outros efeitos podem tomar em consideração os elementos funcionais e a perspectiva eminentemente social que foi determinante da paralisação das atividades econômicas e, portanto, fator da quebra a base objetiva da relação contratual.
Caberá agora à nossa jurisprudência e doutrina completar o trabalho e enfrentar as inúmeras situações que já estão surgindo e que provocarão importantes alterações na “vida de relação” (na expressão cunhada por Emílio Betti), compreendida não somente em sua dimensão econômica, mas fundamentalmente ética e social.

[1] O caráter ideológico é apontado por CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Apresentação. In: SALOMÃO, L. F.. CUEVA, R. e FRAZÃO, Ana. LLE e seus impactos no Direito brasileiro. SP: RT, 2020, p. 01 – 17. Como diz Guido Alpa a ideologia “do mercado” torna-se muitas vezes irrefletida, óbvia e supérflua. ALPA, Guido. Contratto e Mercato. In: Le stagioni del contratto. Bologna: Il Mulino, 2012, p. 113.
[2] “Essa redação dominada por termos vagos e imprecisos denota descuido da boa técnica legislativa e do direito como um todo”. FRADERA, Vera. Liberdade contratual e função social do contrato – Art. 421 do CC. In: MARQUES NETO, Floriano, RODRIGUES JR., Otavio, XAVIER, Rodrigo. Comentários à LLE – Lei 13.874/2019. SP: RT, 2019, p. 303.
[3] MARQUES, F. RODRIGUES JR., O. XAVIER LEONARDO, R. Op. Cit, p. 10 e 11.
[4] Jorge Cesa Ferreira da Silva afirma que o Art. 317 “ancora” a revisibilidade “na desproporção valorativa da prestação”.  
[5] MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Revisão Contratual. Onerosidade excessiva e modificação contratual equitativa. São Paulo: Almedina, 2020, p. 24 – 32.
[6] RODRIGUES JR. Otavio Luiz e XAVIER LEONARDO, Rodrigo. A MP da liberdade econômica: o que mudou no CC? www.conjur.com.br, acesso em 23.03.2020, expressam bem o alargamento da norma, apontando “contradição com os objetivos da própria medida provisória (...)”.
[7] Exemplo disso é Decreto n. 46.973, de 16 de março de 2020, editado pelo RJ, entre muitos outros. 
[8] Sobre a pertinente distinção entre inevitabilidade, força maior e caso fortuito, o recentíssimo artigo de FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Caso fortuito e força maior: as questões em torno dos conceitos. Jota: www.jota.com.br, acesso em 22.03.2020.
 é advogado, professor de Direito Empresarial da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e membro da Rede de Pesquisa Direito Civil Contemporâneo.

Revista Consultor Jurídico, 30 de março de 2020, 8h15

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