“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

Crueldade contra animais: vaquejadas e rodeios segundo o STF

 

AMBIENTE JURÍDICO


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A interação do humano com os animais apresenta pontos de tensão e de difícil enquadramento legal; ao lado de carinho e cuidado sobrevivem práticas ligadas ao uso dos animais domésticos, domesticados e silvestres que podem ou não ser vedadas pela legislação. Fiz um breve resumo de questões suscitadas em juízo neste artigo, de 11/2/2023 e penso hoje em delinear os fundamentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal no caso da vaquejada[1] e em casos seguintes. Há conceitos relevantes, mas de contornos (nelas) pouco nítidos.

No caso da vaquejada, em que se discutiu a constitucionalidade de lei cearense que regulamentava a vaquejada e o apertado placar (6 a 5) contrário à prática denota a divisão do tribunal. O relator ministro Marco Aurélio entendeu (fls. 13 do acórdão) que "a par de questões morais relacionadas ao entretenimento às custas do sofrimento dos animais, bem mais sérias se comparadas às que envolvem experiências científicas e médicas, a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988", secundado pelo ministro Roberto Barroso, que entendeu provado o maltrato e sopesou os valores constitucionais (fls. 45): "considero mais apropriado assentar que do sopesamento entre elas decorre o seguinte enunciado de preferência condicionada: manifestações culturais com características de entretenimento que submetem animais a crueldade são incompatíveis com o art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, quando for impossível sua regulamentação de modo suficiente para evitar praticas cruéis, sem que a própria pratica seja descaracterizada".

O ministro Teori Zavascki, embora tenha ficado vencido, afirmou (fls. 108) que "a meu ver, estamos diante de uma mutação ética". "Nós até podemos lidar com ela de uma forma mais brusca ou mais diluída no tempo, mas é uma questão de tempo não se tolerar mais, no mundo civilizado, a crueldade contra animais para entretenimento. Daqui a pouco, entrará na agenda ética da humanidade — ainda não estamos nesse estágio por uma série de questões civilizatórias, sociais e econômicas — a própria eliminação de animais para fins de alimentação. Não entrou porque é uma ideia cuja hora ainda não chegou, para usar a expressão célebre de Victor Hugo, mas a questão da ética animal para fins de entretenimento está entrando no radar ético da humanidade. Nós estamos tendo o primeiro capítulo de um debate que não vai acabar aqui nem neste caso, mas que é importante de se fazer."




O reconhecimento da crueldade ínsita à prática, a manifestação cultural entremeada com entretenimento, foi a tônica dos votos dos ministros Carmen Lucia, Rosa Weber e Celso de Mello, que acompanharam o relator.

Os votos vencidos seguiram outra linha. O ministro Edson Fachin entendeu (fls. 15 do acórdão) inexistir prova do maltrato, diversamente dos precedentes da farra do boi e da rinha de galos, a prevalecer a manifestação cultural. O ministro Gilmar Mendes disse (fls. 17, 19, 103): "E ainda que, em algum casos, nós possamos ter situações em que há possível lesão ao animal, talvez a medida não devesse ser a de proibição da atividade, tendo em vista exatamente esse forte conteúdo cultural [...] a inconstitucionalidade resultaria em jogar na ilegalidade milhares de pessoas que se dedicam a essa atividade em caráter amador ou profissional — esses números são impactantes —, pessoas que se reúnem para também ver esse tipo de espetáculo. Quer dizer, retirar dessas comunidades o mínimo de lazer que, às vezes, se lhes propicia ... Agora, as consequências de uma declaração de inconstitucionalidade como esta são extremamente sérias. Estamos falando de duzentos mil empregos. [...] E o que o legislador cearense busca é exatamente permitir que esses folguedos, que essas práticas sejam feitas observando padrões civilizatórios".

O ministro Teori Zavascki, embora [percebe-se do voto, como reproduzi acima] admitisse o maltrato e a nocividade da prática em si (fls. 59, 61, 108 do acórdão), entendeu que afastar a lei que regulamentava a vaquejada não impediria que a prática continuasse, agora sem qualquer proteção; e ficou vencido com essa consideração. O ministro Luiz Fux (fls. 74/75) entendeu que a ponderação entre a manifestação cultural e a proteção animal fora feita pelo legislador, não justificando a interferência do tribunal.

Em julgamento posterior e analisando a proteção animal frente à liberdade religiosa prevista no artigo 5º inciso VI da Constituição[2], o tribunal confirmou a constitucionalidade da LE nº 12.131/04-RS que, alterando lei anterior, explicitou que o sacrifício ritual em cultos e liturgias de matriz africana, desde que sem excesso ou crueldade, não infringe o Código Estadual de Proteção Animal [que veda a crueldade e o maltrato dos animais]. O tribunal considerou a lei gaúcha constitucional à unanimidade, baseado em três pontos: um, os autos demonstravam que tais sacrifícios nas religiões de matriz africana tradicionais, que não se confundem com a magia negra, não implicam em crueldade ou maus tratos; o sacrifício devia ocorrer sem excessos ou crueldade; e estão ao abrigo da liberdade de religião assegurada na Constituição.

O tribunal vedou o abate de animais apreendidos em situação de maus-tratos[3], declarando a ilegitimidade da interpretação dos artigos 25 § 1º e 2º da LF nº 9.605/98 e dos artigos 101 a 103 do DF nº 6.514/08 e demais normas infraconstitucionais, em sentido contrário à norma do artigo 225 § 1º VII da Constituição. Segundo o acórdão (fls. 11), "o caso em análise não se refere às situações concretas de abatimento de animais quando constatada a contaminação por doenças ou pragas infectocontagiosas, mas sim à eliminação a priori da fauna apreendida em situação de maus-tratos, sob a alegada e hipotética possibilidade da ocorrência desses riscos ou em virtude de falhas do poder público na destinação dos animais às entidades previstas em lei".

A decisão teve em vista, primordialmente, a apreensão de galos treinados para a luta em rinhas, mantidos em cativeiro em situação de maus-tratos. O acórdão, cujo fundamento analisarei em artigo seguinte, critica a permissão do abate pelo juiz de Luiz Eduardo Magalhães, na Bahia, que decorreu do parecer técnico apresentado e da inviabilidade da entrega dos galos sob custódia a outras entidades, pois treinados para lutar e matar brutalmente outros animais da mesma espécie; pelo mesmo motivo e acrescentando que tais aves têm as cristas, as esporas e às vezes a ponta dos bicos amputadas para aumento da agressividade, também citada no acórdão, a juíza de Patrocínio (MG) autorizou a autoridade policial a doar as aves para consumo humano ou o abate para descarte dos animais apreendidos, observada a avaliação veterinária a ser feita em cada ave.

Mencionou o ministro Gilmar Mendes que, permitido o abate para consumo humano, em sacrifícios rituais e nos casos comprovados de doenças, pragas ou outros riscos sanitários, não se pode admitir o abate imediato de animais apreendidos em situação de maus-tratos, pois devem ser prioritariamente libertados em seu habitat ou entregues a jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas para guarda e cuidados de técnicos habilitados.

O ministro Nunes Marques acompanhou o relator, mas acrescentou à permissão do abate às "situações em que a preservação da vida do animal (sobretudo os mutilados) dependa da assunção pelo Poder Público de ônus econômico excessivo, segundo critérios de conveniência e oportunidade, a serem sopesados caso a caso e com base em laudos técnicos apropriados". "A realidade do país é diversa. Assim, há muitos municípios em diversos estados da Federação que não possuem nenhuma estrutura para manutenção de tais animais".[4] É uma decisão ambígua, que merece meditação.

Em julgamento recente[5], a 1ª Turma do STF reformou acórdão de nossa lavra que havia vedado as provas de laço e imobilização de bezerros e garrotes em rodeios e eventos do gênero, pois causam dor e sofrimento nos animais. Entendeu o ministro Dias Toffoli que o tribunal havia aplicado equivocadamente o princípio da precaução e que a LF nº 13.364/16 incluiu o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestação cultural nacional, além de elevar essas atividades (que incluem o rodeio, a vaquejada e as modalidades esportivas equestres) à condição de bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro; mencionou também que o § 7º do artigo 225 da Constituição, na redação dada pela EC nº 96/17, para os fins da parte final do inciso VII do § 1º do art. 225, não considerar cruel as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais nos termos do § 1º do art. 215[6].

Divergiu o ministro Marco Aurélio por entender (fls. 13/14) que a conclusão de maltrato do acórdão recorrido, matéria fática, não podia ser revista na via extraordinária. O ministro Alexandre de Moraes, mesmo reconhecendo a posição mais rigorosa de decisões anteriores, entendeu (fls. 26/36) que, desde a redação original do inciso VII do § 1º do artigo 225, a vedação de práticas que submetam os animais a maus tratos é feita "na forma da lei", agora tratadas na LF nº 13.364/16 e na LF nº 13.873/19, com previsão da adoção de medidas de proteção aos animais e que a conclusão de maltrato, uma presunção sem suporte científico, não justificava a aplicação do princípio da precaução (fls. 30).

Há ambiguidades e equívocos nessas últimas decisões do Supremo Tribunal, que mencionei mais à frente. Em artigo próximo tentarei responder às questões postas no artigo anterior, que reproduzo aqui: (a) pode a lei definir se há ou não crueldade, um fato que independe do plexo normativo; e (b) é ampla a liberdade do legislador para qualificar uma prática como bem cultural, bem imaterial integrante do patrimônio cultural, como foi feito no assunto aqui tratado. Em outras palavras e antecipando a apreciação a ser feita em Brasília na ADI nº 5.772-DF, com parecer favorável da Procuradoria Geral da República e conclusos com o relator ministro Roberto Barroso desde 3/2/2021, tal emenda e lei que serviram de fundamento às últimas decisões são constitucionais?


[1] Procurador Geral da República v. Assembleia Legislativa e Governador do Ceará, ADI n 4.983-CE, STF, Pleno, 6-10-2016, Rel. Marco Aurélio, maioria. A vaquejada consiste na perseguição por dois cavaleiros que, cavalgando um de cada lado, derrubam o boi pelo rabo. A marcação dos pontos exige que o boi termine com as quatro patas no ar. Consta na ementa: “A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Discrepa da norma constitucional a denominada vaquejada”.

[2] Ministério Público do Rio Grande do Sul v. Governador e Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, sendo interessados o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, Conselho Estadual da Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros do Rio Grande do Sul – CEUCAB-RS, União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil, Federação Afro-Umbandista e Espiritualista do Rio Grande do Sul – FAUERS, RE nº 494.601-RS, STF, Plenário, 28-3-2019, Rel. Marco Aurélio, Rel. p/acórdão Edson Fachin, maioria.

[3] Partido Republicano da Ordem Social – PROS v. Presidente da República e Congresso Nacional, Referendo na MC na ADPF nº 640-DF, STF, Plenário, 20-9-2021, Rel. Gilmar Mendes, unânime.

[4] Não fica claro se o acréscimo feito pelo Min. Nunes Marques, não expressamente corroborado, integra o acórdão e constitui uma hipótese válida de abate.

[5] Ministério Público de São Paulo v. Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Quarto de Milha – ABQM, AgRg no AgRg no RE nº 926.944-SP, STF, 1ª Turma, 14-3-2022, Rel. Dias Toffoli, vencidos os Min. Marco Aurélio e Roberto Barroso, negaram provimento ao agravo regimental.

[6] Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.


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