“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

SENSO INCOMUM - A frase "faça concurso para juiz" é (e) o que restou do processo penal


9 de março de 2017, 8h00
Subtema: Sim, como venho dizendo, defender a legalidade, hoje, é um gesto revolucionário.
O que há em comum na decisão que (1) autoriza, contra legem, um aluno a cursar duas faculdades públicas e (2) a operação "lava jato", na qual já há cumprimento de penas sem denúncia e sem processo (e sem condenação)? Resposta: tudo. E por que? Porque o sistema jurídico foi substituído pelo “sistema moral” (entendido lato sensu como o conjunto de crenças, convicções, subjetividades dos indivíduos e da coletividade). Quando o primeiro professor entrou na sala de aula após o dia 5 de outubro de 1988 e gritou para os alunos: “— o juiz boca da lei morreu e agora nasce o juiz dos valores e dos princípios”, começou a derrocada. Começava a erodir (carcomer) a Constituição Federal. Abrimos as portas para os predadores do Direito. Externos e internos. Resultado: isso que está aí. Sei que muitos torcem o nariz para essas críticas, inclusive juristas que se beneficiam desse “estado de coisas”

Mas, vamos ao primeiro exemplo. Prosaico, mas simbolicamente importante. Recebo a notícia, via ConJur, de que um estudante obteve autorização para se matricular em dois cursos de graduação, simultaneamente, em instituições públicas de ensino superior. A notícia vem com uma nota de arremate: "o que é proibido pela Lei 12.089/2009". Assim, como quem diz: "hoje é quinta-feira". Cara de paisagem.
Como assim? Será que estaríamos diante de uma das seis hipóteses em que o juiz pode (deve, nestes casos) afastar a aplicação da lei? Será que se tratava de lei inconstitucional? Não. Simplesmente um aluno teve atrasada a sua formatura por causa de uma greve dos professores em Universidade estadual no Paraná e, por ter passado em novo vestibular, requereu judicialmente, contra clara disposição de lei, que lhe fosse deferida a matricula. Simples assim. Está concluindo Faculdade de Música e agora quer fazer mais um curso superior, só que de Música Popular. Em primeira instância o pedido de tutela antecipada foi negado. Mas, via agravo, o segundo grau concedeu.
Somos um país rico. Muito rico. Ainda assim, a malvada Lei 12.089 proíbe que uma mesma pessoa ocupe duas vagas simultaneamente em instituições públicas de ensino superior. Deve ser por cupidez.
Divago. Retomo. Qual a razão pela qual foi afastada a aplicação da “lei má”? Para a surpresa de ninguém, é que foram "sopesados os direitos envolvidos..." (sempre a vulgata da ponderação — quando é que vamos nos livrar dessa Chikungunya epistêmica?). Quando vejo que uma decisão começa com "sopesados os direitos envolvidos", penso que é a zika pegando. Se é caso de "sopesar" (sic) é porque há uma balança e direitos com "pesos" diferentes, não é isso? O "direito" do aluno era mais gordinho, mais fofinho, e pesou mais do que o produto da esquálida democracia representativa de Pindorama. Bingo.
"Ah, professor Lenio, que má vontade! Não haverá prejuízo para o erário. O aluno não ocupará, de verdade, duas vagas ao mesmo tempo. A decisão apenas reservou a vaga a ele, que não deu causa à greve." Respondo: Meu problema não é com o aluno. Não é com os grevistas. Não é com o desembargador que concedeu a tutela antecipada. Não é, sequer, com a decisão "conciliatória" da contenda.[1Meu problema é com a qualidade do nosso Direito, de nossa Democracia. É como a questão que vem a seguir: não estou preocupado com delações feitas sem o cumprimento da lei. Minha preocupação é com o resta do processo penal.
Faça concurso para juiz”, disse o juiz: qual é o simbólico disso?
Decisões como a que acima relatei fragilizam a democracia já combalida. Coisas parecidas ocorrem todos os dias. Metade da herança para amante. Prisões preventivas sem prazo. Prisões decretadas em sede de Habeas Corpus. Mandados de busca coletivos em favelas. Ativismo judicial pernicioso para a democracia. Até decisões “boas” ou “fofas” acabam caindo na esparrela do ativismo, como a decisão que manda comprar ônibus para um grupo de alunos e ignora que a maioria das crianças não pode ser alcançada por essa decisão.
Parece que estamos na Alemanha depois de Weimar. Não se concorda com as leis e se assume postura “tipo direito livre”, “jurisprudência dos interesses”, “valores”, etc. Recomendo a leitura do livro de Ingo Müller, Furchtbare Juristen (Os Juristas do Horror). No caso de 1923 (golpe de Hitler em Munique), os juízes acharam que as leis eram muito duras e fizeram uma ponderação: deram uma pena branda a Hitler e não o expulsaram do país (a lei era clara). Ingo Müller denuncia que, naquele tempo, no interesse do establishment, podia-se torcer as leis com interpretações que somente favoreciam ao Estado e seus agentes. E os advogados e professores se quedaram silentes. O que me dizem os leitores?
Estamos nos comportando como os adeptos do direito livre ou do realismo jurídico. Só que com mais de 100 anos de atraso. Vivemos um woodstock epistêmico. Vou dizer de novo algo que sequer precisa ser dito em países desenvolvidos: “Não cabe ao juiz gostar ou não da lei”.
Por isso quero também falar do segundo caso (o das delações e cumprimentos de penas sem processo). Ou seja, é nessa mesma linha de desprezo pela lei (e pela Constituição Federal) que na operação "lava jato" são feitas delações premiadas cujas penas ou não existem no ordenamento e/ou são aplicadas sem denúncia e sem condenação (ler aqui). Até a revista Veja denunciou isso. E até o fechamento desta coluna não vi explicação alguma sobre esse gravíssimo fato. Estou esperando. Qual será o custo disso para o futuro do Direito?
De todo modo, já não há processo penal desde há muito. Aliás, falei (d)isso no painel que fiz, por coincidência, com o juiz Sergio Moro no IBCCrim em 2015. Consultei meus apontamentos e vi que acertei na mosca. Que lá esteve, vai lembrar. Cobrei exatamente isso de Moro: quem fiscaliza o “processo de delação”? Quais são os limites?
Dias antes do congresso do IBCCrim, de forma percuciente, Alexandre Morais da Rosa escreveu uma coluna na ConJur (4/7/2015) perguntando: como ensinar processo penal depois da "lava jato"?, ao que respondi, na semana seguinte, com a pergunta: E já se ensinava processo penal antes da "lava jato"? Peço que percam alguns minutos na leitura e depois retornem ao presente texto. Esta discussão está mais explicitada no meu novo livro Hermenêutica e Jurisdição: Diálogos com Lenio Streck (Livraria do Advogado), que traz 130 perguntas que me foram feitas ao longo de meses pelo juiz e doutor em direito Bianor Arruda, pelo doutorando Daniel Ortiz Mattos e pelos mestrandos Rafael Dalla Barba e Diego Ribeiro. São 260 páginas de respostas detalhadas “tudo isso que está ai”.
Leram? Então voltamos. Sigo. Se a comunidade jurídica não reagir e exigir o cumprimento da legalidade — sim, porque, como venho dizendo, defender a legalidade, hoje, é um gesto revolucionário — corremos o risco de institucionalizar o arbítrio, por mais que alguém diga que os fins justificam os meios.
Os fins não justificam os atropelos da lei. Aliás, o que é isto — a lei? Na medida em que parcela considerável da comunidade jurídica adora o judge made law do realismo jurídico — no processo civil tem gente defendendo precedentes vinculantes feitos pelas cortes superiores — Direito é o que o judiciário e o MP dizem que é. Onde está a indignação da doutrina?
As faculdades já podem ser fechadas. Se as leis podem ser suspensas por um simples ato de vontade, para quê cursar cinco anos de faculdade? Vamos parar de nos iludir ou iludir os pobres alunos. Estamos construindo — na graduação e na pós-graduação — imensas próteses para fantasmas. E ensinando aos alunos como subir no pau de sebo epistêmico (o pau de sebo é em homenagem ao sarcasmo de Jhering — e aqui recomendo as colunas de Jefferson Guedes e Thiago Pádua — belos textos: lendo o último, lerão os anteriores).
Eu, que vim lá do direito crítico anterior a Constituição, em que tínhamos que apostar em juízes que fizessem um direito alternativo ou um uso alternativo do direito em relação ao status quo, hoje, cada vez mais — e o faço já desde os anos 90 — tenho a convicção de que, nesses dias tormentosos, defender a legalidade passou a ser um ato revolucionário (minha LEER fez com que eu me repetisse).
É dura a vida do causídico em Pindorama. Por vezes, tem de ouvir coisas como “faça concurso para juiz”...! Minha solidariedade ao Dr. Batochio. Depois de tantos serviços prestados à Justiça, inclusive no parlamento, teve que passar por uma situação como essa (ver aqui — no link, está também o áudio... que é autoexplicativo).
No mais, dizer o quê? Com que cara chega hoje o professor de Direito Constitucional ou de Processo em sala de aula? O que houve com o Direito? Cartas para a coluna.


1 Na minha “fórmula” da RAC – e aqui homenageio o professor Pablo Malheiros que a ensina aos seus alunos - (Resposta Adequada a Constituição = aplicar o filtro dos 5 princípios-padrões + se necessário passar pelas 6 hipóteses pelas quais um juiz pode deixar de aplicar uma lei e + se necessário, responder às 3 perguntas fundamentais – tudo conforme explicitado em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica e Verdade e Consenso), poderia pular as duas fases anteriores e ir direito às três perguntas fundamentais. Mas não tratarei disso agora.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 9 de março de 2017, 8h00

http://www.conjur.com.br/2017-mar-09/senso-incomum-frase-faca-concurso-juiz-restou-processo-penal

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