“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

SENSO INCOMUM - Drible da vaca em súmula, uniões poliafetivas... O que mais vem aí?


28 de janeiro de 2016, 8h00
Escrevi há poucos dias criticando decisão de um juiz do Piauí, que decretou uma preventiva com base em enunciado feito em workshop. Mostrei também o exemplo do verbete prêt-à-portermuito utilizado no júri e no processo penal em geral, assim enunciado: “legítima defesa não se mede milimetricamente”. A partir desse verbete-enunciado, pode-se dizer qualquer coisa. Mostrei, com isso, o perigo do uso dos tais “precedentes” de que trata o NCPC. Todos os dias, advogados são vítimas de verbetes citados ad hoc, frutos de decisões teleológicas (finalístico-consequencialistas) nas quais primeiro se decide e depois se escolhe um verbete para “fundamentar”. Trata-se do fator “chama o estagiário para justificar isso”. Ou seja: não se discute o DNA do caso que serve de “fundamento a posteriori”.

O leitor Paulo Adaias Carvalho Afonso — atento assessor do Tribunal de Justiça de Mato Grosso — mandou-me uma situação que simboliza isso tudo que venho denunciando há décadas, desde meu primeiro livro. Lembra que um dos maiores absurdos que ocorre no cotidiano do direito processual penal é o não conhecimento de apelações decorrentes de sentenças do Tribunal do Júri, apenas porque o recorrente não indicou a alínea (do artigo 593, III) que pretende se insurgir ainda na petição de interposição. Costumeiramente, a negativa de conhecimento se dá apenas com a utilização standard da Súmula 713, do Supremo Tribunal Federal, que prevê "o efeito devolutivo da apelação contra decisões do júri é adstrito aos fundamentos da sua interposição".
Disse-me que, pesquisando no site do STF, observou que são mencionados como precedentes ao verbete sumular os HC's 68.878/RJ, 71.458/SP, 71.456/SP, 76.237/MG e 76.338/GO. Só que tais “precedentes” em nenhum momento falam que não se deve receber a apelação quando não for indicada a alínea. Ao contrário, os “precedentes” dizem que a não indicação é mera irregularidade, sendo o efeito devolutivo então delimitado nas razões recursais. Veja-se os exemplos a seguir que não seguem o DNA dos precedentes da aludida súmula do STF, cujos julgamentos tem o condão de colocar o réu anos e anos na prisão, tudo com base em uma súmula sem DNA, citada descontextualizadamente (inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça):
— TJ-CE; APL 0000430­13.2003.8.06.0160/50002;  TJ-MA - Rec 0000815-23.2007.8.10.0058; Ac. 147101/2014: Nos processos oriundos do Tribunal do Júri, a apelação fica limitada ao fundamento constante, necessariamente, na petição de interposição, não sendo permitido incluí-lo, nas razões, ou aí modificá-lo, ampliá-lo ou limitá-lo. A ausência de indicação do fundamento legal deve conduzir ao não conhecimento do recurso. Aplicação da Súmula 713, do STF. Também este julgado do TJ-MG: APCR 1.0718.08.002277-2/001; também tem este do TJ-MS, verbis: Conforme posicionamento sumulado do Supremo Tribunal Federal (enunciado  713 da Súmula do STF), a devolutividade da matéria ao tribunal ad quem nos casos de apelação contra decisões do júri é extremamente restrita, sendo vinculada aos fundamentos apresentados no momento da interposição do recurso. (TJ-MS; RSE 0000827-90.2009.8.12.0032). Tem até apelação não conhecida de assistente de acusação com base no mesmo argumento, como no TJ-GO (ACr 0105418-78.2003.8.09.0006). Ainda: TJ-RN – ap. crim. 133320 RN 2009.013332-0. Mais: TJ-PR ap.crim. 0155874; ap. crim. 1651214. Todos esses julgados indicam como fundamento a súmula do STF. Até o STJ entrou nessa: veja-se o Habeas Corpus 176.362. Também o de n. 182.891. Ainda bem que o STJ tem precedentes ao contrário disso, como é o caso do  HC 258.623. E também o HC 246.354. Bingo. E...ufa! Viram como necessitamos colocar também no CPP o dispositivo que coloquei no NCPC (art. 926 – exigência de coerência e integridade)?
Interessante é que os advogados (e nem o MP) se dão conta dessa questão ligada ao contexto de cada julgado citado. Transformamos o direito em um jogo em que vige a hermenêutica do pistoleiro: quem sacar primeiro, leva. Também vale citar qualquer coisa para justificar algo que satisfaça o solipsismo judicial, como foi o caso do juiz que usou a tese dos “direitos dos manos” (sic) para manter uma preventiva (ler aqui). A moça de Pomerode está fazendo sucesso com sua monografia sobre o direito dos (des)(hu)manos...!
O que é isto — um porco nos ombros de um patuleu?
No meu livro Lições de Crítica do Direito, mostro já na apresentação como funciona a metáfora do hermeneuta na ilha dos peixes sem cabeça. Ali, o trabalho do hermeneuta é detectar o DNA do problema decorrente da ingenuidade dos ilhéus que desperdiçam proteína. Se o hermeneuta não fizer isso, ficará jogando pérola aos porcos (aos ilhéus, no caso). Sequer adianta levar uma nutricionista. Isto porque não há racionalidade no ato dos ilhéus. Só fazendo o revolvimento do chão linguístico em que está assentada a tradição (inautêntica, equivocada) é que o fenômeno poderá ser compreendido. E, uma vez compreendido o fenômeno, o equívoco poderá ser desfeito.
Outro modo de entender isso é a “metáfora do porco nos ombros de um cidadão qualquer”. É mais ou menos assim: Várias pessoas enxergam um sujeito levando um porco nos ombros. Cada um dá o seu palpite: pela roupa que o sujeito está vestindo, trata-se de um furto; outro diz que o porco está sendo levado para cobrir uma porca na vizinhança (achou que o porco é vistoso); já um terceiro diz que houve um escambo (segundo o palpiteiro, coisa muito comum na região); mais outro diz que o porco está sendo levado ao mercado, uma vez que é sexta-feira e sábado a feira vende carne suína; e assim por diante. Só uma coisa não muda: o fato de que há um vivente carregando um porco nos ombros. Qual é o busílis? O busílis é saber qual é o sentido desse fenômeno. Pode-se dá-lo assim, “palpitando”? Claro que não. Somente averiguando a situação hermenêutica (hermeneutische Situation, como diria Gadamer) é que chegaremos ao sentido desse “fato”. O resto é palpite. Pois o jurista, ao se deixar levar por uma doutrina rasa (que quer imitar a velha jurisprudência dos conceitos alemã) e por uma “jurisprudência” prêt-a porter, prêt-a-parler e prêt-a-penser, comporta-se como alguém que se arrisca a dizer “qual é o significado do fenômeno ‘homem com um porco nos ombros’”. Poderá até acertar, comum um relógio parado que acerta duas vezes a hora por dia. Aliás, hoje estamos muito mais para a jurisprudência
prêt à appliquer, que se transforma em prêt à manger le foie de l'accusé(pronto para comer o fígado do réu) do que qualquer outra coisa.
Sem sofisticar, quero insistir: as coisas só são no “seu sentido”. Não há coisas sem nome (no sentido de sua existência, é claro), assim como não há conceitos sem coisas. Enunciados prêt-a-porter são conceitos sem coisas. E correm o risco de nominar “coisas” sem contexto algum. Sem DNA. Como falei há mais de dez anos, existe uma diferença ontológica entre texto e norma. O texto só é (só existe) na sua norma (seu sentido); e essa só é no texto. E textos são eventos, não apenas frases em uma folha de papel.
O caso da preventiva do Piauí se resolveria diferente se o juiz não desse um palpite sobre “o porco nos ombros”. Do mesmo modo, o tal enunciado da legítima defesa (que não se mediria milimetricamente) teria feito menos estragos se alguém tivesse feito uma desleitura do fenômeno “acórdão do TJSP”. Sim, fazer hermenêutica é “desler”, como diriam Bloom e Stein. Algo como um palimpsesto (como explico em Lições de CHD): uma pintura que cobre outra, que cobre mais uma e assim por diante. Temos de raspar. Raspar as pinturas. Até chegar na melhor. Desler os textos (portanto, desler os fenômenos). Como na metáfora da ilha dos peixes sem cabeça e sem rabo, temos de “procurar a velha senhora”. No direito posso chamar isso de melhor resposta ou resposta correta ou, ainda, como venho referindo, a RAC (resposta adequada a Constituição). Simples assim. Mas muito complexo.
Post scriptum 1: Sobre o “juiz Hércules”
Passou despercebido um equívoco constante na entrevista dominical daConJur em 17 de janeiro de 2016 (ler aqui). Com efeito, em determinado momento, a professora entrevistada disse que “Existe uma figura que se chama Juiz Hércules, definida pelo Robert Alexy, um pensador genial. Seria o juiz que analisaria sempre todas as questões e todos os conflitos e seria capaz de lutar contra tudo e contra todos para fazer uma decisão absolutamente neutra.” Pedi, por minha conta, para que a ConJur fizesse a alteração na quarta, dia 27. Trocar Alexy por Dworkin. Equívocos ocorrem, certo?
Post scriptum 2: união poliafetiva e a fonte do Direito no churrasco
Pindorama é incrível. O Direito de há muito já não interdita. Qualquer pessoa inventa princípios, fala de costumes (mesmo que seja proveniente de meia dúzia de adeptos) e, com isso, arruma um modo de o Estado lhe dar guarida. Sempre estoura no Estado, essa entidade metafísica. Mesmo que a CF e o Código Civil nem de longe tratem disso. Por exemplo, em nome da afetividade, dos costumes (?), etc, tudo é possível. Logo, logo, haverá união estável entre terráqueos e ET’s (para dizer pouco). Explico o que quero dizer: Li que já estão registrando, em cartórios, uniões estáveis (que, como se sabe, segundo a CF são equiparadas ao casamento) de várias pessoas. Parece que o caso que li tem como fonte de Direito “um churrasco na casa de Rita ou Eustáquio”. Binguíssimo. Para quê votar em deputados? Não é necessário. O Direito nasce do costume. Trata-se de um “trisal” (em lugar de casal — adorei essa nomenclatura: tri-sal!). E eu vou estocar alimentos. E isso logo dará despesas para a Previdência. Quem paga? Simples: a patuleia. A combalida Viúva. Bingo de novo. Chamam a isso de união poliafetiva. Alvíssaras. Por que o resto do mundo não pensou nisso?  Segundo a notícia, parece que a tabeliã que fez o registro (tudo indica que o Judiciário ainda não deu guarida a essa tese – ufa!) está fazendo doutorado na USP exatamente sobre esse tema. Ah, bom. Agora fiquei mais tranquilo. Só uma coisa:  está fazendo pesquisa empírica às custas de uma violação ao Código Civil e à CF? Como assim? Uma tese inconstitucional? Sim, ela conta que já registrou uma união com cinco pessoas. O que dizer disso? Diz a matéria da FSP que, além do registro como união estável, o próximo passo “é acrescentar terceiros (ou quartos, quintos etc.) em planos de previdência e herança, por exemplo” (sic). Viva! Como eu me ufano do direito de Pindorama. Para quê Código Civil? Para quê Constituição? Viva “mores”.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 28 de janeiro de 2016, 8h00


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