ESPECIAL
03/06/2018 06:55
A possibilidade de
reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, a partir do
julgamento de um recurso especial pela Quarta Turma do Superior Tribunal de
Justiça (STJ), em 25 de outubro de 2011, está entre as principais conquistas
jurídicas da comunidade LGBTI (como se designam lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais, intersexuais e os que têm outras orientações).
Pouco antes, em
maio daquele ano, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar duas ações
constitucionais, havia decidido que as uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo
deveriam ter o mesmo tratamento legal dado àquelas formadas por heteroafetivos.
Em maio de 2013, o
Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução 175,
que regulamenta a celebração de casamento civil e a conversão da união estável
em casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2013 e 2016, foram
registrados 19,5 mil casamentos homoafetivos nos cartórios brasileiros, com
média de aproximadamente 5 mil por ano, o que representa cerca de 0,5% do total
anual de uniões do país.
A jurisprudência do
STJ apresenta uma série de julgados que refletem as mudanças da sociedade em
relação aos direitos dos homoafetivos e dos transexuais em temas diversos, como
a possibilidade de mudança no registro civil e a adoção de crianças.
Casamento
Depois de três anos
vivendo juntas, duas mulheres requereram habilitação para se casar em Porto
Alegre, mas o pedido foi negado em dois cartórios. Na Justiça, a pretensão
também foi indeferida em primeira e segunda instância, ao argumento de que o
Código Civil de 2002 só admitia o casamento entre homem e mulher.
Em julgamento
histórico concluído em 25 de outubro de 2011, a Quarta Turma do STJ deu
provimento ao recurso das mulheres para declarar que nenhum dispositivo do
Código Civil veda expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Ao contrário,
conforme assinalou o relator, ministro Luis Felipe Salomão, não haveria como
enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta aos
princípios constitucionais da igualdade, da não discriminação, da dignidade da
pessoa humana, do pluralismo e do livre planejamento familiar.
“Se é verdade que o
casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo
múltiplos os arranjos familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser
negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de
orientação sexual dos partícipes”, disse o ministro.
“Não obstante a
omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos,
não poderia mesmo ‘democraticamente’ decretar a perda de direitos civis da
minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão”, acrescentou.
“Nesse cenário, em
regra é o Poder Judiciário – e não o Legislativo – que exerce um papel
contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não
ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a
Constituição, sempre em vista à proteção dos direitos humanos fundamentais,
sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que
pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como
forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos”, concluiu Salomão.
Registro civil
Em maio de 2017, a
Quarta Turma do STJ entendeu ser possível a alteração do gênero constante no
registro civil de transexual, independentemente da realização de cirurgia de
adequação de sexo. A decisão foi resultante do pedido de modificação de prenome
e de gênero de transexual que apresentou avaliação psicológica pericial para
comprovar sua identificação social como mulher.
Ao pedir a
retificação de registro, a autora ressaltou que, mesmo sem ter se submetido à
operação de transgenitalização, passou por outras intervenções cirúrgicas e
hormonais para adequar a aparência física à realidade psíquica, o que gerou
evidente dissonância entre sua imagem e os dados apresentados no assentamento
civil.
Em seu voto, o
relator do recurso, ministro Luis Felipe Salomão, ressaltou que o STJ já
permitia a alteração de nome e gênero nos registros dos transexuais submetidos
a cirurgia de transgenitalização. O ministro assinalou que a extensão desse
direito aos que não passaram pelo procedimento cirúrgico representa uma
evolução da jurisprudência.
“A citada
jurisprudência deve evoluir para alcançar também os transexuais não operados,
conferindo-se, assim, a máxima efetividade ao princípio constitucional da
promoção da dignidade da pessoa humana, cláusula geral de tutela dos direitos
existenciais inerentes à personalidade, a qual, hordiernamente, é concebida
como valor fundamental do ordenamento jurídico, o que implica o dever
inarredável de respeito às diferenças”, afirmou Salomão.
Exposição ao
ridículo
A Terceira Turma
confirmou o entendimento da Quarta Turma e do STF ao analisar o caso de
transexual não submetido à cirurgia de transgenitalização que conseguiu a
alteração do prenome por decisão judicial, mas não obteve deferimento para que
o gênero fosse alterado para feminino nos documentos.
O relator do
recurso, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, esclareceu que a Lei de Registros Públicos “não contém norma que
autorize a modificação do sexo civil, contendo apenas autorização para se modificar
o prenome, nos casos de substituição por apelidos públicos notórios, ou no caso
de exposição ao ridículo”.
No entendimento do
relator, a discrepância entre o prenome de um determinado gênero e o sexo
indicado nos documentos expõe a pessoa ao ridículo, o que enquadra a situação
em uma das possibilidades indicadas pela Lei dos Registros Públicos.
Em seu voto,
Sanseverino citou precedente de relatoria da ministra Nancy Andrighi sobre a
situação dos transexuais. “A relatora também alertou que esse transtorno,
segundo a literatura médica, além de causar intenso sofrimento psíquico, pode
levar a pessoa a praticar tentativas de automutilação e até mesmo de
autoextermínio”, destacou.
Adoção
O STJ também já
tomou decisões favoráveis a pessoas homoafetivas em matéria de adoção. A
Terceira Turma concluiu que um casal em união homoafetiva há 12 anos apresentou
as condições necessárias para permanecer com a guarda de um bebê de dez meses
até a finalização do processo regular de adoção.
Em 2016, o bebê, de
apenas 17 dias, foi encontrado dentro de uma caixa de papelão em frente à casa
da mãe de um dos companheiros. Após acolher a criança, o casal procurou a
Polícia Civil para reportar o ocorrido e contratou um detetive particular para
descobrir quem era a mãe da criança. Ao ser encontrada, a mãe alegou ter
escolhido o casal para cuidar do bebê por não ter condições financeiras de
criá-lo.
O relator do
processo, ministro Villas Bôas Cueva, ressaltou a existência nos autos de um
relatório da equipe de adoção do Juizado da Infância e Juventude demonstrando
que o casal mantinha lar estruturado e apresentava o desejo genuíno de
permanecer com a criança de forma definitiva. Além disso, não foi apontada
nenhuma das hipóteses de violação dos direitos do menor previstas no artigo 98 do
Estatuto da Criança e do Adolescente.
“Admitir-se a busca
e apreensão de criança, transferindo-a a uma instituição social como o abrigo,
sem necessidade alguma, até que se decida em juízo sobre a validade do ato
jurídico da adoção, em prejuízo do bem-estar físico e psíquico do infante, com
risco de danos irreparáveis à formação de sua personalidade, exatamente na fase
em que se encontra mais vulnerável, não encontra amparo em nenhum princípio ou
regra de nosso ordenamento”, concluiu o relator.
Limite de idade
Em agosto de 2015,
a Terceira Turma analisou recurso do Ministério Público do Paraná (MPPR) que
contestava o pedido de habilitação de inscrição para adoção de criança com
idade entre três e cinco anos por uma pessoa homoafetiva solteira.
O MPPR alegou que,
nas hipóteses de adoção por pessoa homoafetiva, o adotando deveria ter o mínimo
de 12 anos de idade para poder manifestar a concordância ou não com a adoção.
O relator do
recurso, ministro Villas Bôas Cueva, ressaltou que o artigo 50 do
Estatuto da Criança e do Adolescente “não veda a adoção de crianças por
solteiros ou casais homoafetivos, tampouco impõe qualquer restrição etária ao
adotante nessas hipóteses”.
A Terceira Turma
concordou com o posicionamento do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), que
reconheceu, com base na documentação juntada aos autos, que o interessado na
adoção reunia as condições psíquicas, sociais, econômicas, jurídicas, físicas e
habitacionais, além da motivação legítima em sua pretensão.
“Não se vislumbra,
portanto, nenhum impedimento legal para que o recorrido figure no registro de
pessoas interessadas na adoção de crianças e adolescentes, inclusive, sem
qualquer restrição etária”, confirmou Villas Bôas Cueva.
Proteção integral
Em março de 2017, a
Quarta Turma, em caso semelhante, reforçou o entendimento de que é possível a
inscrição de pessoa homoafetiva no cadastro de interessados em adoção de
menores de qualquer idade. Na ocasião, a pessoa interessada em adotar buscava
uma criança de até três anos. No entanto, o MPPR alegou que o possível adotante
deveria ter, pelo menos 12 anos, em atendimento ao princípio da proteção
integral.
“A Terceira Turma
desta corte já teve a oportunidade de analisar o tema, tendo igualmente
decidido, por unanimidade, pela inexistência de previsão legal para a limitação
etária pretendida pelo Ministério Público em razão da orientação sexual do
candidato a adotante”, explicou o relator do processo, ministro Raul Araújo.
Varas competentes
Ao julgar caso de
reconhecimento de dissolução de união estável homoafetiva, em maio de 2013, a
Terceira Turma reforçou que não deve existir diferenciação no tratamento das
uniões homoafetivas e heteroafetivas, inclusive no que diz respeito às varas
competentes.
Segundo o acórdão
proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), o caso em análise,
de reconhecimento e dissolução de união estável homoafetiva, seria de
competência do juízo cível.
No entanto, a
relatora do recurso no STJ, ministra Nancy Andrighi, concluiu ser o tema de
competência da vara de família, em razão da equiparação das uniões estáveis
homoafetivas às uniões estáveis heteroafetivas, independentemente das
limitações apresentadas no Código de Organização e Divisão Judiciária.
“Se a prerrogativa
de vara privativa é outorgada ao extrato heterossexual da população brasileira,
para a solução de determinadas lides, também o será à fração homossexual,
assexual ou transexual, e todos os demais grupos representativos de minorias de
qualquer natureza”, ressaltou a ministra Nancy Andrighi.
Partilha de bens
Em junho de 2015, a
Terceira Turma analisou o pedido de partilha de bens de um ex-casal formado por
duas mulheres que viveram juntas por 12 anos. Segundo o relator do recurso,
ministro João Otávio de Noronha, os bens adquiridos durante a união deveriam
ser partilhados, independentemente da real contribuição de cada uma na
construção do patrimônio.
“Nos autos, é
incontroverso que as partes tiveram uma relação de parceria por longos anos –
28 de agosto de 1994 a dezembro de 2006 –, não havendo dúvidas de que houve
aquisição de patrimônio comum pelo esforço e contribuição de cada uma das
conviventes. Mesmo que uma tivesse melhores condições financeiras que a outra,
é certo que também esta exercia atividade remuneratória e, evidentemente, dava
seu contributo para o bem da relação e formação do patrimônio comum”, ressaltou
o relator.
Esse entendimento
havia sido adotado previamente, em fevereiro de 2014, quando a Terceira Turma
concluiu que o direito à partilha nas uniões homoafetivas não depende da
comprovação do esforço comum para a aquisição dos bens. No caso em análise, o
reconhecimento da união estável, pelo tribunal de origem, ocorreu após a morte
de um dos integrantes do casal.
“Ao assim decidir,
o tribunal local se coaduna com a jurisprudência tanto desta corte, como do
Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a dignidade de uma pessoa não pode
ficar atrelada à sua orientação sexual, superando-se toda a carga preconceituosa
que recai sobre as relações homossexuais, fato que não pode ser renegado pelo
direito”, concluiu o relator do recurso, ministro Villas Bôas Cueva.
Os números dos processos não são
divulgados em razão de segredo judicial.
http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/A-atua%C3%A7%C3%A3o-do-STJ-na-garantia-dos-direitos-das-pessoas-homoafetivas
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